Outra noite mal dormida. Também pudera, ceamos nem bem eram 7 da noite. Trinta minutos depois, nada tendo pra fazer, já que leitura com lanterna de testa exige demasiado esforço dos olhos, trato de dormir. Adormeço só até meia-noite. Daí por diante, um sono entrecortado até as 7 da manhã quando, então, levanto e inicio a arrumação de minhas coisas. Hoje retomamos o trekking. Saímos às 8:20, rumo ao norte, deixando pra trás a laguna Chiat Khorta que, conforme vou subindo a montanha, mais pequena se torna até desaparecer completamente de meu campo de visão. Após uma subida bem íngreme, alcançamos o Paso Jallayco. Do alto de seus 5.031 m, tenho às minhas costas o Condoriri, o Pequeño Alpamayo e o Cerro Áustria. Adiante do paso, à esquerda, enfileirados um ao lado do outro, cerros de pequena altura, dois deles cobertos por modestos glaciares em processo acelerado de retração, e lá no fundão, surge a face noroeste do Huayna Potosí. Dá pra perceber que nas montanhas, cujas rochas são de coloração preta, houve, em tempos “recentes”, glaciares cobrindo-as porque não apresentam vestígio algum de vegetação. Já nos demais cerros, a glaciação pertence a tempos remotíssimos, pois as rochas de tonalidade bege apresentam-se cobertas por uma leve cobertura vegetal. À medida que se desce até o vale Jallayco, perde-se a visão do Huayna Potosí que desaparece, gradualmente, atrás dos cerros que se perfilam à esquerda do vale. À direita, outra linha contínua de montanhas ladeia o pampa coberto de paja brava cujo tom amarelo anêmico quebra um pouco a aridez da paisagem. E pela primeira vez, vejo, brotando, rente ao solo arenoso, minúsculas margaridas. Não resisto à tentação de bater com a ponta do bastão num dos muitos córregos congelados que pontuam o caminho, mas o gelo, duríssimo, não se verga ao toque do metal. Após a planura do pampa, tem início uma pequena subida de onde se avista a laguna Tuni com suas águas azuis, dividida em duas partes por uma estreita faixa de terra. E os mesmo nevados que vi lá de cima do Paso Jallayco, agora, dum outro ângulo, no fundo do vale. Poucas subidas, nada que exija muito esforço. O dia não poderia ser mais gostoso: temperatura amena, pouco vento e aquele céu azulado sem pinta alguma de nuvens. Durante a caminhada bordejando a laguna, começa a ventar com mais intensidade. A trilha, aberta no meio da encosta dum cerro, exige certo cuidado porque muito estreita. Qualquer descuido, rola-se ribanceira abaixo que nem tatu bola, machucando-se nos pedregulhos que cobrem o terreno. Percebo, claramente, a volta que dei desde que comecei a caminhada, na terça, partindo de Tuni. Os cerros, daqui pra frente, apresentam uma coloração clara de rocha, cobertos por uma leve penugem de gramíneas amareladas. Já dá pra se avistar o cerro Maria Lloco e o pequeno glaciar que desce de seu cume até a metade de sua face sul. E, eis, novamente, reaparecendo o Huayna Potosí. Passamos por uma comuna aimará, situada à beira da laguna Zacacha, cuja atividade econômica consiste na extração de estanho, ainda relativamente abundante nesta zona. Mais adiante, ruínas duma vila de mineiros onde décadas atrás existia outra mina de estanho. Só restam as paredes de barro daquilo que um dia foram acanhadas habitações. Pobre gente que se submetia àquela perigosa e insalubre atividade em troca duns míseros trocados. Chegamos ao acampamento Maria Lloco às 15:30. O lugar tem quatro casotas de adobe cuja proprietária, uma índia, já idosa, exibe, contudo, um rosto lisinho de dar inveja. Ela me estende uma mão calejada, áspera ao toque, e transmitindo cortesia, diz alguma coisa em aimará, com um jeitinho triacolhedor. Nemesio, sentado no chão, ao seu lado, confirma o que eu, de cara, intuíra. A simpática senhora está dando as boas vindas em aimará. Ela não fala nada de espanhol. À minha frente, a desbundante face oeste do Huayna Potosí exibe, nos trechos que não se apresenta coberta de gelo, rochas de tonalidade cinza-claro. Ao seu lado, o cerro Maria Lloco dá uma impressão pesadona com suas rochas escuras embora na tradução do aimará lloco signifique coração. A temperatura, beirando os 14º C, é um convite pra se lagartear ao sol enquanto esperamos as mulas com as mochilas, conduzidas pelas índias que ainda não chegaram da laguna Chiat Khorta. Nesta região, são as mulheres que bancam as arrieras já que os homens trabalham ora como porteadores ora como guias nesta época do ano. Nos demais meses, cuidam de seus rebanhos de lhamas. Por supuesto, alugo uma das casas que, infelizmente, não dispõe daqueles confortáveis sacos de forragem da casa da laguna Chiat Khorta. Apenas uma lona azul estendida no chão. Ajeito o saco de dormir perto da janela e convido Nemesio a ocupar o espaço restante. Ele recusa. Insisto, dizendo que venha, é melhor, tem a lona para protegê-lo do frio. Escolhe, entretanto, o canto oposto do cômodo e mostra o papelão que usará como isolante. Eu, no meu canto, leio, e Nemesio, no seu, prepara a janta. Será massa com salsicha. Em frente ao fogareiro, sentado no chão, o filho da dona das terras. Ambos engatam um conversê animado, como sempre, em aimará. Lá fora, o sol, em seus últimos fulgores, tinge de amarelo os flancos de alguns cerros, enquanto no alto, surge, toda exibida, bem rechonchuda, a lua, a única mancha branca no azulão do céu.
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