Em 4 dias de Jalapão, hoje o céu está nublado porém não se mantém cinzento por muito tempo, pouca demora o azul volta a reinar no firmamento jalapenho. A vegetação predominante é campos limpos com veredas de buriti e cerrado ralo, embora haja mata ciliar ao longo dos rios que banham a região. É tudo muito bonito, em especial as flores que crescem nos arbustos em ambas as margens da estrada. Saímos da fazenda Progresso já manhã adiantada e seguimos pela estrada principal que vai dar em Mateiros. Eu por mim teria ficado mais tempo desfrutando da fascinante companhia de Antonio e Milma porém percebo que Douglas não é de esquentar muito assento nos lugares. Paramos na comunidade Rio Novo onde há um bar com mesa de sinuca. Provo picolé de buriti, a deliciosa fruta presente nesta palmeira que abunda no cerrado. O óleo extraído de seu côco é rico em caroteno, daí sua coloração alaranjada. É utilizado pelos povos tradicionais do cerrado como vermífugo, cicatrizante e energético natural. Afora isso, suas folhas se bem trançadas servem de eficiente cobertura nos tetos das casas. Atravessamos a ponte sobre o rio Novo com pedras visíveis em seu leito. Algumas crianças brincam em uma das margens fazendo de trampolim um galho de árvore. Na paisagem, à esquerda, destacam-se as serras da Jalapinha, do Espírito Santo e o morro do Saca-Trapo. O evidente desgaste na encosta oeste dessa serra é o responsável pela formação em seu sopé das dunas famosas não só por sua coloração amarelo-rosada quanto pelo inusitado lugar onde estão localizadas tão longe do oceano. À direita, outros planaltos com o topo achatado, destacando-se o do Cinzeiro tão extenso quanto o do Espírito Santo. O calor está fodasticamente tórrido merecendo o Jalapão a fama de ser considerada uma das mais quentes regiões brasileiras. Nosso plano é conhecer as dunas situadas no Parque Estadual do Jalapão que, entretanto, só abre às 14. Em assim sendo, paramos na Abenita, cujo restaurante se encontra defronte à entrada do parque e distante poucos quilômetros do famoso atrativo turístico. A princípio, a mulata de carnes fartas é reticente, meio desconfiada, não se abre de cara nem faz o estilo simpaticona. Custa a entregar banais informações. Longos silêncios pontuam as frases que saem apertadinhas, com evidente má vontade. Depois que ela te manja e sente firmeza daí se abre, exibindo uma irreverente comunicatividade. Enquanto ela fuma um baseado, escarrapachada na única confortável cadeira de plástico da bodega, eu sentada num banco sem encosto provo e gosto da cachaça feita com um tipo de tubérculo chamado jalapa, daí a origem do nome da região. Abenita agora mais generosa com as informações revela que há as jalapas de cerrado e as de vereda. Mas não me dá mole quanto peço que explique a diferença, como se explicar o óbvio fosse um pé no saco. O almoço preparado por ela no fogão a lenha é simples e saboroso: arroz, feijão e galinha. Pra nossa surpresa, o carro de Douglas estraga bem na hora que estamos saindo pra ver as dunas. Proponho que peçamos carona aos carros que passam na portaria do parque mas ele prefere ficar fuçando no veículo. Consigo que uma caminhonete pilotada por um guia e um casal de turistas paulistanos me leve até lá. São 5 km de puro arenal. Vejo 2 carros atolados embora sejam caminhonetes 4x4, o que confirma a máxima de que não adianta nada ter carro traçado se o motorista não manja como dirigir nesse tipo de terreno. A coloração amarelo-rosada das dunas realçada que está pelo pôr do sol é realmente deslumbrante. Dali de cima dá pra ver toda a serra do Espírito Santo, desde o morro do Sacatrapo ao sul até a última ponta do maciço ao norte. O que tem de gente no cocuruto das dunas me tira o tesão. Difícil fotografar ou filmar tendo bandos de criaturas ou tirando selfies adoidadas ou fotografando uns aos outros. O que menos fazem é curtir o belo espetáculo da caída do sol tingindo de dourado o lugar. Muita falação e pouca contemplação. Acho que tô ficando levemente misantropa, cada vez gosto menos de ajuntamentos humanos. Quando retorno, encontro Douglas embaixo do carro tendo já desmontado o tanque de gasolina, segundo ele o provável causador da pane veicular. Ao redor, alguns curiosos olham o gringo naquela fuçação, sem nada dizer. Pernoitamos, então, na Abenita armando nossas redes entre as árvores no terreiro atrás da casa. Sábado de manhã, o mecânico Elias vem de moto de Mateiros pra tentar consertar o carro do Douglas. Enquanto os dois se entretêm com o carro (homens...homens e seus brinquedinhos!), eu converso com Abenita que, muito bem humorada, enrola um charo de maconha. Desconfio que tá de olho no jovem guarda-parque que mora na frente de sua casa. Quando ele passa por ela, Abenita solta uivos (de loba?!) como se avisasse que está no cio. Conta que as 2 filhas vivem em Mateiros. Uma lhe deu 3 netos, a outra, solteira, mora na casa por ela alugada na cidade. Se gaba do namorado de 27 anos (ela tem 51), um desgosto na vida da filha solteira, o que ela não dá a mínima. “Hoje vou pra rua (cidade) dançar forró porque se deixo o sujeito muito solto, ele se engancha noutra”, declara entre uma baforada e outra do baseado. Moram com Abenita 2 sobrinhos, o Robermario e o Ricardo. No seu entendimento, o 1º é sonso demais, o 2º mulherengo. Pois não é que este guri fica me lançando uns olhares compridos quando passo por ele?! Este Jalapão tá fazendo muito bem pro meu ego, valha-me deus! O céu sem nuvens embora soprem fortes rajadas que levantam polvadeiras de terra avermelhada. E uma quizomba agita o recinto. Tudo porque Robermario não acha seu cartão de memória, desconfiando que tenha sido levado por 2 sujeitos que pararam no bar pra beber cerveja. Roga praga pros 2, desejando que morram antes de chegarem a Ponte Alta. Após procura ali, procura acolá, ele enfim acha (até eu ajudei na busca do tal cartão), e Abenita recomenda-lhe que desfaça a praga, no que ele virtuosamente responde “já retirei”. Mas a diversão é infindável na casa de Abenita. Lá pelas tantas, tia e sobrinhos conversam sobre tamanho de pênis. Desde que eram pequenos, comenta ela, percebeu o bom tamanho das genitálias dos parentes. Ela, Abenita, não curte muito, não, pau grande. Ricardo, o mais quieto, não fala muito sobre o assunto (será recato? pra me olhar de cantinho, até que não!!), já Robermario ensina que tem de tratar com amor, que daí a mulher vai gostar, sim! Que família!! Finalmente, conseguiram o mecânico mais Douglas fazer o carro funcionar. Deixamos Abenita pra trás e pegamos o rumo de Mateiros dando um rolê na cidade onde não há nada interessante a não ser uma rua principal cujas placas indicam que se está perto tanto da divisa da Bahia quanto da do Piauí. O único atrativo da feia cidadela é o Paraíso, a sorveteria onde são vendidos deliciosos picolés feitos com frutos do cerrado. Pernoitamos Na Beira da Mata, pousada e camping a uns 5 km da cidade, preferindo entretanto amarrar as redes nas árvores do grande jardim. Depois de 6 dias sem internet, aleluia, a pousada tem wifi, se bem que não muito bom. Enfim, é o que se tem e consigo postar algumas fotos no Facebook dos dias anteriores. Domingo, saímos de Mateiros após comermos o bom café incluso na diária do camping. Pegamos a estrada pra São Felix distante 80 km. Dobramos à esquerda numa estrada que vai a Mumbuca, vilarejo distante 10 km da estrada principal. O antigo quilombo resume-se a 10 casas de adobe, uma igrejinha branca e azul mais uma casa de artesanato onde são vendidos artefatos feitos com capim dourado. Nada me encanta, tanto que só compro uma tiara, mais pra ajudar a comunidade. Vejo uma sorveteria na frente da praça e vou até lá onde peço um picolé de buriti, uma das minhas frutas preferidas do cerrado. Lá mora Mauricio, compositor e tocador de viola de buriti. Ele dedilha algumas canções no belo som emanado do tosco instrumento. Indago se tem CD e ele traz alguns. Compro um sem hesitar! Dali vamos até a praia do Mumbuca banhada pelo rio Sono, uma delícia de lugar cujo dono é o pastor evangélico Tocha. Como é cedo, nem ½ ainda, tomamos banho e fazemos sandus que comemos à beira do rio. Terminando o frugal almoço, continuamos a trip, entrando noutra estrada que acaba no Encontro das Águas, assim chamado o lugar porque aqui se juntam os rios Sono e Formiga. Há um fervedouro, pequeno poço de águas cristalinas que impedem a criatura de afundar devido à pressão exercida pela água que jorra do lençol freático. Embora límpidas as águas, saio com 250 g de areia nos fundilhos do biquíni. Vamos então tirar a areia onde os rios se encontram a 200 metros dali. O rio Formiga de águas esverdeadas é calmo mas o Sono, contrariando seu nome, mostra-se bem agitadinho. Como ali não tem onde acampar seguimos até o fervedouro do Buritizinho, uma área de camping, contando com espaçoso alpendre e fogão a lenha, ao lado do rio Formiga. Está vazio porque a alta temporada ainda não começou. O fervedouro é muito lindo, uma poça de água azulada rodeada por bananeiras. Gosto muito mais deste do que o anterior porque não tem aquele alvoroço de areia entrando biquíni adentro. No Buritizinho, cabem apenas 6 pessoas por vez, sendo que o tempo de permanência na alta temporada é de 20 minutos, chegando a ter fila de espera....que horror!! De que boa nos livramos vindo nesta época do ano!! Os donos de fervedouros são geralmente negros, pobres até o momento de começarem a explorá-los. Este faz 6 anos que foi aberto ao público e as terras pertencem à família de Artun desde o tempo que os negros fugiram das mãos perversas dos fazendeiros. Sua mulher, Marilene, 38 anos, tem 7 filhos, e no parto da mais moça fez laqueadura. A filha mais velha com 21 anos faz faculdade de Biologia à distância em Mateiros. Fazemos uma comidinha gostosa a quatro mãos eu e Douglas no fogão a lenha: galinha e batata doce assada. As redes são armadas no interior do alpendre o que foi bom porque choveu a noite inteira. A segunda-feira amanhece linda com raras nuvens no céu, e continuamos a viagem até São Felix do Tocantins, distante 50 km. A estrada se comparada às outras é “ótima”. Percebo que esta zona do Jalapão é mais habitada, tanto que há construções à beira da estrada, destacando-se pela singeleza um ranchinho feito de folhas de buriti com 2 redes feitas do mesmo material. Mais adiante, uma casinha de adobe chama minha atenção. Paro e antes de fotografar pergunto ao jovem que está entrando pelo portão se posso. Ele aponta a senhora vestida de preto com um terço branco fazendo de colar. Dirijo-me a ela e peço sua permissão. A velhinha reclama que não há respeito algum porque as fotos são tiradas às escondidas e nenhum retorno advém disso. Aborrecida acrescenta que há pessoas que fazem mal uso das fotos. Se for pro bem, ressalva ela, não se incomoda. Soube inclusive que uma delas já foi parar em Araguaína, veja só. Depois duns 10 minutos de conversê ela consente que fotografe a residência. Pergunto seu nome, Alzira e, na despedida, peço pra lhe dar um abraço. Contentes as 2, nos despedimos como boas amigas. Pena que não dei conta de fotografá-la também!! São Felix é bem mais ajeitada que Mateiros, contando com uma praça arborizada, bancos, quiosque e uma igreja. Paramos pra almoçar, estacionando o carro em frente ao tal quiosque. E o carro pifa outra vez. Sorte acontecer na cidade e não no meio do mato. Conversa dali conversa daqui com uns homens que estão fazendo churrasco na praça, descubro a existência dum mecânico (banco a tradutora do Douglas porque se seu espanhol com forte acento inglês é difícil de entender pior ainda sua canhestra tentativa de falar português). Um dos homens pega sua moto e vai até casa do mecânico de nome Índio chamá-lo. Exceto pelos homens assando a carne na praça, não há quase movimento nas ruas. A situação de cidade-fantasma se deve ao ponto facultativo decretado pelo precavido prefeito, ciente que os efeitos do tragoléu, tomado no dia anterior, em comemoração ao dia das mães, iriam deixar 80% da cidade de ressaca. São Felix permanece quase vazia até o final da tarde, o que confirma a intensidade da bebedeira. Um sol de rachar e a internete nem pega, um tédio só. Quando vou dar uma caminhada pra me entreter, vejo 4 homens esparramados em colchões, dormindo ao lado da igreja onde há sombra. Estamos há mais de 3 horas parados na praça debaixo dum baita calor com um carro de som aos berros irradiando canções sertanejas cujos versos entoam baboseiras como “menina da aldeia, pegava sua mochila só pra vê-la chorar” ou então “lembro dos dias que éramos crianças pensando que a vida era favo de mel”. Bueno, o conserto do carro durou do ½ dia até às 5 da tarde. O problema continua a ser a tal bomba da gasolina. Índio a trocou pela dum Audi que nas suas palavras vai dar muito bem conta do recado. Cobra uma boa grana de Douglas que paga sem chiar. Índio, sujeito generoso, vai até o armazém em frente e traz 2 cervas pro Douglas e uma guaraná pra mim hahahaha. Vamos até um super e lá compramos algo pra cozinhar, ou melhor, Douglas porque é ele quem se encarrega de fazer almoços, jantas e desjejuns. Eu lavo louça e faço caipirinhas que ele bebe avidamente. Como os gringos gostam desta nossa bebidinha! Acampamos no balneário Alecrim a 2 km da cidade, às margens do rio Sono, nesta zona mais tranquilo. Chove durante a madrugada de terça-feira e temos de sair das redes e montar a barraca. No que terminamos, a chuva para...tsktsktsk. No retorno a Palmas, passamos pela Catedral, um impressionante monolito rochoso, que pertence ao dono do Eco Lodge, um empreendimento não só turístico mas visando à preservação ambiental. Almoçamos lá enquanto conversamos com José Raimundo que trabalha no lugar. As estradas de chão batido no Jalapão são horríveis, salvo a que liga São Felix a Novo Acordo. A partir de Novo Acordo, 100 km de asfalto até Palmas apesar do trecho entre Santa Teresa do Tocantins e a capital esteja horrível, cheio de buracos-crateras. Ficamos 2 dias em Palmas de modo a que Douglas consiga encontrar e comprar a tal bomba do tanque de gasolina. Aproveito a quarta-feira pra dar altos rolês de bici e conheço assim o belo memorial feito por Niemayer em homenagem aos 18 do Forte. Retorno a Luzimangues, atravessando mais uma vez a ponte Fernando Henrique Cardoso sobre o rio Tocantins e provo o melhor pastel da minha vida no food truck estacionado num recanto arborizado ao lado da bela avenida JK. Há até redário pro cliente descansar! E a coisa não pára por aqui não, amanhã seguimos pro Maranhão a fim de conhecer a Chapada das Mesas, um dos sítios que está há muito na minha lista de desejos!!
Um comentário:
Esse povo gosta de um chamego!!! Talvez por ser uma vida que passe tão calma que os namoros vêm para agitar um pouco a calmaria!
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