sexta-feira, 17 de junho de 2016

Mulheres

Choveu durante a noite. Quando acordo, as gotas de chuva cristalizaram em cima da barraca. Faz um frio como há muito não sentia. Os homens encilham os cavalos, animadíssimos, preparando-se para a iminente cavalgada. Juan alvoroçado já está num alegre tragoléu. Mistura numa garrafa de 1,5 litro de refri vinho e coca cola guardando-a num dos alforjes que Fernando lhe trouxe. Ontem quando o guia lhe entregou o par de bolsas, ele se mostrou tão encantado como criança em dia de aniversário. Agora 10 horas as nuvens que encobrem o cerro Verde dispersaram-se  um pouco embora o céu continue nubladíssimo e o frio não dê trégua tanto que os dedos das mãos ardem de dor embora eu use luvas. Terminados os preparativos, os rapazes despedem-se cerimoniosamente estendendo as mãos ao passo que João me pespega uma beijoca na bochecha. E lá vão eles descendo o cerro rumo ao rio Calderilla numa animação juvenil. Pergunto a Pascoala se não se sentirá só sem o marido. De pronto, responde "me hace falta en las tareas domesticas", e trata de entrar no curral onde se encontram as ovelhas, ordenhando-as para com o leite fazer queijos. No desaiuno, ela coloca à mesa um belo naco de seu queijo de coloração branca e sabor suave. Enquanto bebo meu chá com leite, lembro do que Berta contou hoje pela manhã quando me convidou pra ver as ovelhinhas recém paridas. De que há ovelhas-mães que se recusam a alimentar suas crias, o que obriga o dono a apartá-las do rebanho, encerrando-as juntamente com os recém-nascidos num espaço à parte de modo a forçá-las a alimentá-los. Neste posto também o rádio fica dia e noite ligado porque pode algum parente de Juan ou Pascoala enviar alguma mensagem. Entretanto, a notícia que o locutor transmite é um pedido prum tal de Calixto levar 2 cordeiros pro velório duma senhora de nome Modesta. Vai ter festão pelo visto no bota-fora da defunta! Deixamos o posto Reinaga às 10:45 percorrendo por 2 horas uma baixada. Durante a descida, dá pra ver perfeitamente o rio Vuelta Grande serpenteando pela quebrada homônima formada pelos cerros Verde e Loma Grande. A paisagem perdeu bastante sua aridez, e a vegetação toma conta dos campos donde brotam gramíneas e coirones. Cruzamos um pequeno bosque de alisos, árvore de médio porte e tronco fino, cujos galhos a esta época do ano se encontram desfolhados. Abre-se no céu uma pequena janela de azul que nos dá esperança de que o tempo irá melhorar. Pouca demora, o olho azulado cede espaço novamente ao insosso acinzentado. Maldade das grossas esse falso alarme de bom tempo, ala putcha! Paramos na outra casa que Juan tem à margem do rio Calderilla onde se encontra uma de suas filhas. A moça mais os 3 filhos está se preparando pra subir o morro e visitar a mãe durante o fim de semana. Aproveito e retiro minha calça impermeável porque desconfio que se não choveu até agora não choverá mais. Como este tipo de calça esquenta muito o corpo, fazendo com que eu transpire em abundância, é melhor me precaver da perda de fluído corporal. O nevoeiro se dissipou de vez, o que restam são flocos esparsos de nuvens apesar de o céu permanecer com aquele aspecto pesado, como se tivesse com gana de encostar na terra. Caminhamos, então, por uma estrada onde é possível veículos transitarem. Segundo Fernando é a parte menos atrativa da jornada. Encravado no alto duma colina, o guia aponta o que parece ser um cemitério. Explica que os nativos da região constroem cemitérios em lugares altos de modo a perpetuar costume herdado dos incas em deixar os espíritos dos mortos mais perto do rei sol. Ao chegarmos a uma encruzilhada, Fernando indica o lugar não só como ponto de resgate se necessário como o término da versão de 3 dias do Trek de las Nubes. Saímos da estrada e passamos a caminhar no irregular terreno da margem coberta de pedregulhos do rio Calderilla. Como temos de passar pra sua outra margem, cruzamos a correnteza se equilibrando numa improvisada ponte feita de tronco de árvore. A partir daqui a paisagem muda radicalmente: não há mais vestígio algum daquele descampado árido que percorri durante 2 dias consecutivos, a vegetação é onipresente, forrando de verde os cerros do cume ao sopé. E surgem arbustos com delicadas e pequenas flores amarelas e vermelhas. Nem bem ultrapassamos o Calderilla, temos de cruzar outro rio, o Cuesta Grande, sem sinal de tronco ou pedras improvisados de ponte. Fernando procura no rio uma passagem que seja rasa >porém não encontra nenhum trecho onde possamos cruzar sem molhar os pés. O jeito foi arrastar um pedaço de tronco e jogá-lo sobre o leito empedrado do rio. Paramos pra almoçar e assim que terminamos de comer recomeçamos a andar. Com este tempo úmido, o frio se faz sentir assim que se fica muito tempo parado. Mais uma hora e 30 minutos de caminhada em terreno plano seguida duma subida leve duns 40 minutos ao longo do rio Cuesta Grande, quando então passamos a enfrentar um íngreme ascenso de curta duração morro acima. O que compensa é parar vez por outra e apreciar o rio lá embaixo confinado na quebrada Cuesta Grande. Após 5 horas e 20 minutos de pernada, calcorreando em torno de 12 km, estamos finalmente no posto Sarapura pertencente à Feliciana, ostentando recente viuvez. Há duas versões sobre a causa mortis do marido. A oficial declara infarte. Já as más ou boas línguas (depende do ponto de vista) apontam asfixia por ingestão de folhas de coca, morte nada incomum nestes ermos. Isso ocorre porque os homens, que passam o dia mascando coca, lá pelas tantas se embriagam e deitam esquecidos do que levam na boca, se engasgando com a maçaroca de erva durante o sono.  Mora com Feliciana uma vizinha, menina duns 13 anos. Tímida em nossa presença, a guria só fala quando algo lhe é perguntado e mesmo assim por monossílabos. A anciã é magrinha, de pequena estatura, e seus pequenos olhos escuros miram profundamente o interlocutor. Fala sozinha enquanto faz as tarefas domésticas. Irrequieta, nem bem senta já levanta pra fazer sei lá o quê. Sua risada, contudo, é surpreendente: forte, alegre, contagiante. Na igualmente enfumaçada cozinha de Feliciana, enquanto Jose prepara uma janta supimpa - massa com chuletas de porco ao molho barbecue - degustamos uma picada do queijo de ovelha que Fernando comprara da querida velhinha, regado com o delicioso tinto saltenho. Que happy hour!!

2 comentários:

Anônimo disse...

Bea, que imagens, que lugar!!! Adorando acompanhar como foi sua mais recente aventura! Bjs! Alu

MimiChaudon.blogspot disse...

Mesmo com chuva pode-se ver a beleza do lugar! Que bacana!