Quem
dorme em barraca, sabe bem quão entrecortado é o sono. Cada vez que me viro,
acordo, mas graças a deus volto a dormir rapidinho. Por causa desse
dorme-acorda-dorme, escuto fortes rajadas de vento durante a noite. Quando
acordo, o dia continua bonito como ontem: céu azul com fiapos de nuvens que não
empanam o brilho do sol. Jose veste-se
com os trajes típicos de vaqueiro: uma proteção de couro que cobre a parte
anterior de ambas as
pernas, tipo uma saia sem a parte de trás. É um homem alto
e forte com uma bela pança. Já Fernando é mignon e magro. Vaidoso, queixa-se de
que está com sobrepeso na região abdominal. Eu, também, digo pra ele, hehe.
Berta, quando chego na cozinha pro desaiuno, está escutando rádio. Como aqui
não pega celular, o rádio é o meio com que as pessoas se comunicam entre si
nestes ermos. Em sendo assim, Berta, a sorridente, tem como companhia o radinho
de pilha enquanto lava a louça. Não para de sorrir nem quando conta que o
marido a abandonou por uma paraguaia. Fala um bom espanhol porque viveu em
Buenos Aires trabalhando como doméstica durante 20 anos. O fogo de chão já está
aceso de modo a esquentar a água pro café. Saímos às 11:00 e o trajeto é
praticamente plano até a Abra de la Cruz.
Quando lá chegamos, me viro pra apreciar o vale onde fica o posto de
Berta e a Quebrada Incahuasi; bem ao fundo os nevados Acay e San Miguel de
la Poma, dois cerros de 5 mil metros muito procurados por montanhistas. A
partir da abra uma pequena
descida até a paragem Vuelta Grande onde há uma
casinha e um curral feitos de pedras onde dois cavalos nos miram com olhares
sossegados. A partir dali entendo porque o nome do trek é de las nubes. Não só
o vale de Lerma como a cidade de Salta, se não fosse por isso, dariam pra
ser vistos daqui de cima das montanhas, contudo, se encontram encobertos por uma massa
compacta de nuvens. Uma pena que não dá pra se distinguir nadica de nada sob a
espessa bruma. Parece um gigantesco lago branco suspenso no ar! Dois grandes
cerros que não se deixaram ainda envolver pela neblina se defrontam, o da
esquerda é cerro Loma Grande em cuja encosta é visível um sendero por onde
subiremos; já o da direita chama-se cerro Verde. Ambos formam a quebrada Vuelta
Grande cuja abra recebe o nome de Planchones. Quando iniciamos a subida do Loma
Grande, a cerração se instala de vez na paisagem, Caminhamos praticamente o
resto do tempo dentro de nuvens, tanto que Fernando em tom jocoso observa
“estamos dentro de un gigantesco nebulizador, Beatriz”. Parada para almoço
quando então, inevitavelmente, discutimos sobre o clima. Fernando adverte-me
que se chover forte amanhã será obrigado a pedir resgate via telefone satelital
com o que será enviado um 4x4 até uma estradinha cujo acesso está a 15 km.
Consultado, Jose, um pessimista, opina, é claro, pela possibilidade de chuva no
decorrer do período. Eu, absolutamente desencanada quanto à questões
meteorológicas – pode estar cinzentézimo o céu e até garoando que nada disso me
afeta ou impede de fazer as coisas -,
assevero que San Pedro não vai nos deixar na mão. Jose limita-se a me
lançar um olhar descrente sem nada comentar. Rebanhos de ovelhas ao longo do
caminho são cuidados por cães vigilantes que rosnam pra nós quando passamos.
Basta, contudo, um gesto de mão e um xô xô pro animal recuar. Ainda em meio à
forte cerração, o que baixou muito a temperatura, só descida até o posto
Reinaga onde chegamos às 14:30. Pelos meus cálculos devemos ter caminhado uns 6
km. O destaque na paisagem são pedaços ainda sangrentos da ovelha recém
carneada pendurados em ganchos presos nos galhos duma árvore. Sobre o muro de
taipa, que rodeia a residência, um conjunto de 3 casas de pedra em formato de
U, a pele da ovelha jaz estendida exibindo o couro branquinho. Juan, o
proprietário, é um setentão baixote, gorducho e
alegre. Já sua mulher,
Pascoala, é séria e mal consigo entender seu espanhol. Não rola entre nós a
mesma química que rolou com Berta. Possui outro temperamento a roliça senhora
cuja idade, 74 anos, aparenta menos. Ali já se encontram oito jovens, amigos de
Juan. Vieram a cavalo de San Lorenzo para amanhã buscarem um gado. Sentados ao
redor duma mesa, embaixo dum telheiro, o frio é acabrunhante menos pra eles que
bebem pra caramba. Num caldeirão, um dos jovens acendeu um braseiro que
transmite um pouco de calor ao ambiente aberto. Uma caneca passa de mão em mão.
Não resisto e peço pra provar a beberagem, resultado de erva mate e água,
coada, mais um tanto de graspa. Taí, gostei! Jose, num fogãozinho de 2 bocas,
prepara uma panela de lentilhas com batatas e linguiça. Com fome e porque o
prato está saborosíssimo, peço bis. Juan, já bem altinho de tanto beber uma
mistura de vinho com coca cola, nos oferece assado de ovelha. Macia e
suculenta, a carne está nota 10. E, mais uma vez, Fernando enche meu copo com
aquele tinto saltenho muito bem vindo pra acompanhar tão agradável ceia. Eu
adoraria ficar mais tempo usufruindo de tão alegre companhia mas o frio está
mesmo de renguear cusco. Por isso, me despeço desejando boa noite a todos e me
toco pra minha barraca, armada um pouco adiante das casas, abrindo alas em meio
à névoa e à escuridão das nove da noite. Como foi super tranquila a pernada sem
nenhuma subida ou descida forte, leio algumas páginas de Fundação, livro
escrito pelo mago da ficção científica, Isaac Asimov. A voz alta de Juan se
destaca entre as demais seguindo-se estrondosas gargalhadas. Ala putcha,
vidinha bem boa esta!




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