sábado, 18 de janeiro de 2020

Santiago de Cabo Verde

Finalizando nossa trip com chave de ouro, eu e Raul escolhemos conhecer Cabo Verde, situado no oceano Atlântico ao largo da África Ocidental. Pra tanto, voamos de Las Palmas a Casablanca onde se faz conexão, seguida de breve escala em Bissau, finalmente, aterrissando em Praia, situada na ilha de Santiago, no inconveniente horário das 4 da manhã. Santiago, a maior das 10 ilhas de origem vulcânica que formam o arquipélago caboverdiano, é super montanhosa e cheia de platôs, aqui chamados achadas. Sua principal cidade, Praia, é também a capital do país. Estamos hospedados na Achada de Santo Antonio, no confortável Salav Guesthouse, a 200 metros da praia de Kebra Canela que se alcança descendo as Escadinhas de Sto Antonio, adornadas por azáleas de cor magenta e rosada. À tarde, sob um céu nublado, presencio, na avenida Jorge Barbosa, que contorna o mar, passeata de estudantes contra a bárbara morte do estudante caboverdiano Luís Giovani em Portugal, no final de dezembro. O assassinato adquiriu contornos racistas devido à origem africana do jovem. Concomitantemente, desfila num conversível vermelho, casal de noivos e daminhas, seguidos por um cortejo de carros buzinando alegremente. Estamos numa zona nobre de Santiago, com bons restaurantes nas redondezas desde o sofisticado Nice Kriola ao popular Rola Festa com preços razoáveis e cardápio regional, além de saborosas sobremesas. O almoço sai por 450 escudos (4 euros), a cachupa 300 escudos (2,70 euros) e a jarra de vinho 250 escudos (2,25) euros. Cachupa é um prato típico à base de milho e feijão, cujos acompanhamentos variam do peixe, chamada cachupa pobre, à carne, conhecida como cachupa rica. Nas regiões agrícolas de Cabo Verde, como alimento forte que é, servem-na ao pequeno almoço pra energizar o corpo antes de enfrentar a roça. No sertão do Piauí e Pernambuco, temos uma versão da cachupa, o pintado. Da praça Cruz de Papa, em frente ao nosso hotel, avistam-se o Monte Vermelho, o Pico da Antônia (+ alto da ilha) e Monte Babosa. Na manhã seguinte a nossa chegada, quando olho pro mar da sacada do hotel, vejo tudo enevoado. Soube depois, conversando com a amável e prestativa Erica, gerente do Salav, que estávamos no meio da "bruma seca", fenômeno atmosférico em que poeira e areia são trazidas do Sahara pelos ventos harmattan, nesta época do ano. Com exceção de dois dias, o restante foi ensolarado, bom pra ir à praia de Kebra Canela e desfrutar dum refrescante mergulho nas suas mansas e claras águas. Nas cidades africanas situadas à beira mar, sempre há vendedoras oferecendo peixes frescos nas calçadas das ruas. Aqui em Praia se concentram no mercado do Sucupira, que visitamos à tarde após um rolê pela cidade. Pra mim, Sucupira foi meio decepcionante porque se dedica a vender maciçamente roupas e sapatos baratos. Nem o pastel de milho, um quitute típico ilhéu, serviu de consolo porque tinha acentuado gosto de peixe. Em compensação, uma alegria conhecer o Farol de Dona Maria Pia. Funcionando desde 1880 quando de sua construção, tem 59 metros. Seu zelador, Jorge do Farol, orgulha -se da boa forma física, adquirida pelas diversas subidas diárias até o topo da torre. No almoço, num restaurante frente ao mar, pedimos de entrada o saboroso pão com alho e queijo, que vem a ser uma pizza com massa super fina, tipo biscoito. Praia é uma cidade moderna com prédios novos e largas avenidas exibindo faixas de pedestres respeitadas pelos condutores de veículos. Não à-toa, considerada patrimônio mundial da UNESCO desde 2009, a Cidade Velha é especial, tanto que a visito duas vezes. Foi nesta parte da ilha, no século XV, que os navegadores portugueses desembarcaram quando descobriram Cabo Verde. Pra ir lá tem que se dar 1 pernada de 3 km atė Sucupira, onde se concentram os iaces, transportes coletivos, tipo van, com lotação pra 18 pessoas, cuja passagem custa, dependendo do trajeto, até 100 escudos (1 euro). Aos iaces só é permitido o embarque de passageiros em Sucupira, vedando-se ao motorista pegar ou largar passageiros ao longo do trajeto, exceto em alguns pontos predeterminados. Além de iaces e ônibus, reservados às longas distâncias, são usados nos trajetos curtos pequenos caminhões com bancos de madeira em suas carrocerias. Roda-se por 13 km numa ótima rodovia passando por Palmarejo, um dos bairros mais populosos de Praia. Na metade do caminho, junto à rodovia, está sendo construído campus da Universidade de Cabo Verde financiado pela República Popular da China. Digno de menção, o maciço investimento dos chineses em Cabo Verde, alcançando várias áreas, entre elas o turismo. Pouco antes da entrada na Cidade Velha, no topo duma colina, encontra-se a Fortaleza Real de São Felipe, construída no século XV e restaurada no século XX. A vista dali é linda, avistando-se a Cidade Velha ao pé do morro. Descendo por uma antiga estrada, entro naquilo que foi um dia a Catedral da Sé. Ao contrário da fortaleza, a igreja, construída em 1462, dois anos após a chegada dos portugueses, exibe poucas paredes ainda incólumes. Túmulos, como era costume à época, alinham-se no chão dos escombros das capelas laterais. Num deles, lê-se decorosa inscrição na lápide de Donna Ana da Luz Barradas advertindo “para ninguém mais se enterrar, senão seu marido, e depois nunca mais eternamente se poderá bullir nesta sepultura”. N0 Largo Pelourinho, bem no centro do pequeno lugarejo, ainda intacta a estrutura feita em pedra clara sustentando em seu topo ganchos de ferro onde os escravos eram pendurados e castigados. Passeio pela parte histórica da cidade cujas casas, construídas com pedra e cal, exibem pequenos jardins na parte da frente. Em uma de suas vias tranquilas e arborizadas, leio, na placa de porcelana branca, a inscrição Rua de Banana. Num restaurante à beira mar, almoço sopa de peixe à Cidade Velha: pescado inteiro, banana, batatas branca e doce mergulhados num caldo grosso com leite de côco. Enquanto espero o iace, converso com uma simpática vendedora de frutas, que veste saia com estampa da bandeira brasileira. Na volta a Praia, escuto, no rádio do iace, o alegre ritmo do funaná, que dá vontade de dançar ao contrário da dolente morna cujos sentimentos de dor e sofrimento são causados não só por males de amor, como àqueles infligidos nos tempos brutais da colonização portuguesa que durou em Cabo Verde até 1975. Sua representante máxima, Cesaria Évora, nascida na ilha de São Vicente, foi quem projetou a música caboverdiana no exterior. Além da morna, há outros gêneros musicais genuinamente nativos como o batuque (recentemente divulgado por Madona, em seu último trabalho musical), o colá, a coladeira, o funaná e a tabanca. Como não podia deixar de ser, reservo um dos dias de minha estadia pra dar uma pernada numa das 9 trilhas existentes no Parque Natural de Serra Malagueta, maciço montanhoso situado na parte norte da ilha. Pra tanto, pego um iace em Sucupira e percorro 55 km durante 1 hora e 15 minutos numa rodovia cheia de curvas e sempre ascendente. Como o mar neste trecho da ilha não é visível, encoberto por paredão de montanhas, fico boquiaberta com os formatos estupendos dos picos que avultam na paisagem serrana. Desço no escritório do parque onde já está a minha espera Gabe, meu guia, nascido na região. Da flora, chama minha atenção duas plantas em que florescem lindas flores amarelas: lacacan e caule de santo. O início da trilha é só descida até Mato Dentro, onde paramos na casa de João Carlos, amigo de Gabe, pra bater um papo. Lá pelas tantas, o simpático rapaz traz uma garrafa de grogue, a cachaça caboverdiana, pra eu provar. Saborosíssima, controlo-me pra não bebê-la às ganhas porque ainda tenho muito chão pela frente. Desce conosco Sheila, mulher de João Carlos, que carrega, à moda africana, sua pequena Raquel, às costas aninhada num pano colorido. A jovem vai a Tarrafal porque amanhã, dia de Santo Amaro, acontecerá grande festa em homenagem ao padroeiro da cidade. Enveredamos então num bosque de mangueiras pra então caminhar no leito seco e empedrado do rio até Ribeira de Principal onde finda a trilha. A paisagem é linda cercada pelas encostas verdejantes das montanhas que formam a Serra da Malagueta. No lugarejo de Chão d’Horta, provo o delicioso pastel de peixe, petisco típico caboverdiano. Após uma breve pernada, embarcamos num caminhãozinho. Na carroceria do barulhento e sacolejante veículo só nós de passageiros até Hortelão onde pegamos um táxi até Tarrafal, passando por encantadoras e pequenas baías cujas praias são cobertas por pedregulhos escuros. No mar, barquinhos coloridos balouçam ao sabor das ondas. Já Tarrafal, situada à beira mar, é praia de areias claras, convencionalmente bonita, o que não me entusiasma muito, ainda mais depois de ter curtido as belezuras serranas da Malagueta, que me deixou de olhos cheios. Despeço-me de Gabe que está indo ao barbeiro cortar a cabeleira em homenagem à festa de Santo Amaro, como bom católico que suponho seja. Retornando a Praia, distante 55 km, passo pelas cidades de Assomada e Picos. Em um pequeno outdoor fincado à margem da rodovia, me delicio com o português de Portugal avisando que “mais vale 1 pé no travão que 2 no caixão....hahaha!!! Dois dias após o trekking na Malagueta, vou a Picos, distante 30 km de Praia, que me chamara atenção quando ali passei a caminho do parque. Sentada ao meu lado no iace, a amável Ariane, com quem entabulo conversa. Ela fornece preciosas dicas sobre duas das 6 ilhas de barlavento, assim denominadas aquelas situadas ao norte. Natural de Santo Antão, ela revela que perto de sua ilha, se encontra a linda São Nicolau, que devo conhecer. Tanto que liga pro tio que vive em Santo Antão pra saber horários dos barcos entre as ilhas. Durante a travessia, diz ela, comum a presença de baleias e golfinhos cabriolando no mar. Bem que eu gostaria de visitar São Nicolau mas não me sobra tempo já que Santiago é ilha de sotavento, localizada, portanto, ao sul. A cidade de Picos, em si, não tem nada de especial. Sua marca distintiva é ser cercada por estupendas montanhas em cujas arestas serrilhadas sobressaem picos longilíneos semelhantes a gigantescos dedos apontados pro céu. Destaca-se, no mar de pedras, o admirável monolito rochoso, apelidado Achada da Igreja, porque dependendo do ângulo e distância em que nos encontramos, se tem a impressão de que a gigantesca pedra jaz pespegada ao templo católico. Mera ilusão de ótica pois o intervalo entre elas é de cerca de 2 km. Pra melhor fotografar Chão da Igreja, peço licença e entro no quintal duma casa, nos arredores da cidade. Habitada por mulheres e filharada, todas parentes, a jovem Deise traz uma cadeira pra que eu possa sentar. Ficamos a conversar, salvo a avó, uma senhora idosa que só fala criolo. Continuando meu passeio, observo que não só nos quintais das casas como nas zonas rurais de Picos brotam plantações de milho, já revelando penachos dourados em suas espigas. Este cereal, importantíssimo na alimentação do caboverdiano, está presente em vários pratos tradicionais como a cachupa, cuscus, pastel e doces. Caminhando sem pressa pra pegar o iace, paro pra bater papo com uma comunicativa nativa na calçada. Mais adiante compro bolinho de milho duma menina que se encontra  diante de sua casa, vendendo guloseimas, provavelmente feitas pela mãe. Na volta a Praia, no iace, uma galera que trabalha no posto de saúde de Picos conversa animadamente. Claro está que me meto na conversa, trocando ideias com Bebeto, dono de agradável prosa. No entendimento de duas colegas, Bebeto é um mulherengo de 1ª grandeza. Seus colegas dão risada. Ele bem humorado se defende frouxamente da acusação. Quando desço em Sucupira, ganho dele uma caneta com as cores da bandeira de Cabo Verde. Parto de Santiago levando no coração apenas boas recordações não só de sua admirável paisagem como da gentileza e afabilidade do povo caboverdiano, em especial de pessoas como Bebeto, Erica, Gabe, Deise, João Carlos, Raquel e Sheila!!

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