Após um mês flanando por Marrakech, Gran Canaria e Santiago de Cabo Verde, retorno a Bissau, já que Raul tem de pegar no batente. Permaneço mais 10 dias na cidade frequentando religiosamente, salvo um fim de semana em Bubaque, o bar Lounge N’Batonha ao entardecer. Ali sempre aparece gente dos 4 cantos do globo, particularmente europeus, o que acho ótimo pois embora meu inglês seja meio trôpego, consigo trocar uma ou outra idéia com eles. Porém o que me leva mesmo ao bar é desfrutar a companhia de meu filho, gerente do estabelecimento. O primeiro impacto, ano passado, quando aqui estive pela primeira vez, foi negativo, considerando que Bissau não é nem bonita tampouco limpa. Contudo, se ultrapassarmos o aspecto meramente estético, oriundo por óbvio, duma impressão objetiva contra a qual não se pode refutar, percebemos quão atraente é a cidade. Ao libertar do convencionalismo meu olhar limitado por padrões de beleza ocidental, passei a ver Bissau com outros olhos e compreender que o belo está no detalhe do alfaiate pedalando sua máquina de costura instalada sob uma marquise da rua principal. O belo está, principalmente, no povo tão gentil, alegre e curioso, ainda mais quando percebe que você é brasileiro. O belo, ainda, é escutar, quando passo pelas esquinas, as vendedoras de frutas, entoando melodiosamente "banana, banana", sentadas nas calçadas embaixo dum sol inclemente. O belo é o engenhoso pedinchar do moleque ao dizer "ofereça-me 500 francos, tenho fome". O belo é também ouvir os guineenses falando vários idiomas conforme a etnia a que pertencem. E são tantas! Quão bela, sem sombra de dúvida, é a paradisíaca ilha de Bubaque. O belo é passear por Bissau Velha e ver nos decadentes prédios o fim duma era que, felizmente, acabou: o jugo português. O belo, graças a deus, é saber que o brasileiro tem no povo africano uma das matrizes de sua cultura. O belo, por fim, é repelir a “realidade” introjetada pelos critérios subjetivos oriundos dos preconceitos e aceitá-la tal qual é. E pensar que há 2 anos atrás a África nem fazia parte da minha lista de desejos! Refletindo sobre tais assuntos parto de Bissau rumo a Madri onde em Barajas Michele está me esperando. Dos 6 dias em Madri, reservo solamente 2 pra curtir a cidade. Afinal, ano passado dei um rolê legal pelos seus principais atrativos. Por isso, na sexta revisito o templo de tapas, que é o Mercado de San Miguel, e, no sábado, Michele me leva a um autêntico boteco madrilenho, chamado Bodeguilla, perto do antigo estádio Santiago Bernabeu. Pequeno, tem poucas banquetas rente ao balcão e mesas na rua. E, como não poderia faltar, uma enorme tv de tela plana sintonizada num canal de futebol. Costume na Espanha o cliente ter direito a cada copo de bebida alcoólica um pincho, assim chamados os tira-gostos. O simpático dono nos serve torresmos, mini bocadillos e salgadinho de pacote pra acompanhar nossas taças de vinho. Nos 2 últimos dias, vamos eu e Michele visitar duas cidades históricas perto de Madri: Sevilha e Toledo, ambas consideradas patrimônios da humanidade pela UNESCO. O clima tem sido generoso e no ensolarado domingo, antes de pegarmos o bus no terminal rodoviário localizado na estação de metrô Moncloa, compro castanhas assadas muito comuns nesta época do ano. O trajeto de 90 km dura 1 hora dentro do confortável ônibus com wifi. Segovia tem como principal atrativo um dos monumentos antigos mais importantes e bem preservados na Península Ibérica: o aqueduto construído com pedras de granito sem utilização de argamassa pelos romanos, remontando ao século I DC. Sua finalidade era a condução ao longo de 15 km das águas do manancial de Fuenfria, na Serra de Guadarrama, a Segovia, cujo abastecimento durou até meados do século XIX. Caminhando pela avenida do Aqueduto ladeada em ambos os lados por restaurantes com mesas ao ar livre, a espetacular obra de engenharia hidráulica vai aumentando de tamanho à medida que dela me aproximo, revelando no final da artéria a grandiosidade de sua construção. Ao contrário do aqueduto, pouco restou em Segovia das muralhas que as cidades medievais costumavam construir a fim de se proteger. Por uma escadaria, sobe-se até o topo do aqueduto onde é possível mirar os picos nevados das serras circundantes. Passeando por sua parte antiga, situada numa pequena colina, onde se encontram vários prédios históricos, passamos diante da Casa de Los Picos, construída no século XV. O curioso edifício tem suas paredes externas decoradas em pontas de diamante com finalidade tanto decorativa quanto defensiva. Tortuosas e estreitas ruas levam à Catedral de Santa Maria, elegante prédio em estilo gótico, fronteiriça à plaza Mayor, outro ponto de grande concentração de restaurantes, bares e cafeterias. Nas ruas, músicos se exibem para entretenimento da turistada. Aliás, o fluxo de turistas vagueando pela cidade é intenso. Difícil tirar uma foto sem alguém diante dum prédio ou caminhando pelas calçadas das ruelas. Continuando nossa peregrinação, vamos dar no Alcázar de Segovia, palácio fortificado que serviu de moradia a diversas gerações da realeza espanhola. Dali se tem ampla visão dos arredores de Segovia. As muralhas do enorme prédio são revestidas com a decoração chamada esgrafiado, que vem a ser, simplificadamente, um tipo de alto relevo. A culinária típica servida na cidade é porco (cochinillo) e cordeiro, assados em forno à lenha. Escolhi comer o primeiro e me foi servida uma baita perna, um tanto quanto gordurosa, acompanhada por batatas. Enquanto Segovia fica ao norte de Madri, Toledo está ao sul, a 75 km. Acompanhada por Michele, pra lá vamos dia seguinte. Adoro cidades medievais, suas estreitas e escuras ruas que desembocam em pequenos largos ensolarados. Seus castelos fortificados cujas altas e grossas paredes impõem admiração reverencial. O ambiente austero que envolve a medievalidade me atrai muito. Toledo não foge à regra, é muito mais rica que Segovia, sem sombra de dúvida. A antiga cidade, cercada por muralhas intactas, localiza-se no topo duma colina, à beira do rio mais extenso da Península Ibérica, o Tejo, aquele mesmo que banha Lisboa. Toledo guarda mais de dois mil anos de história: já foi ocupada por romanos, visigodos, mouros e, por fim, em definitivo, por cristãos quando da Reconquista da Península Ibérica. A cidade ganhou fama de ser a “cidade das três culturas” porque à época conviveram ali cristãos, judeus e muçulmanos em harmonia por muito tempo. Prova disso é a existência de templos católicos, sinagogas e mesquitas espalhada pelas ruelas e becos. A marcante Toledo foi não só o lar escolhido pelo pintor El Greco, como ainda fascinava o autor de Dom Quixote, Cervantes, por seu cosmopolitismo. Em homenagem ao célebre escritor, há uma estátua sua perto do Arco de Sangre, exibindo algumas lojas diante de seus estabelecimentos réplicas em tamanho natural de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. O passado medieval está sempre presente, caso das lojas que vendem armaduras, espadas e facas pois Toledo é famosa por este tipo de indústria desde o século I DC. O Alcázar de Toledo, castelo fortificado que serviu de residência aos reis de Espanha, queda, estrategicamente, sobranceiro ao rio Tejo. Só me resta vê-lo do lado de fora porque justo neste dia está fechado à visitação. Do outro lado do Tejo, chama a atenção o enorme prédio da Academia de Infantaria, centro de formação militar do Exército espanhol. No sobe e desce ladeiras, paramos num restaurante e provo carcamusas, prato típico toledano, feito com pedaços de carne de porco, presunto e linguiça, mergulhados em molho de tomate, acompanhado de batatas fritas. Delicioso pero um pouco pesado! Passeio na ponte San Martin, erguida sobre o Tejo, em cujas extremidades há dois grandes portões de pedra. Uma viagem no tempo passear pelos becos e vielas e, numa dobra de esquina, me deparar com a passagem aérea, feita de madeira entalhada, ligando os dois prédios do Real Colégio de Doncellas, construído no séc. XVI, que visava a educação de jovens pobres. Quando deixamos a cidade histórica pela porta de Cambrón ao entardecer, a lua crescente brilha no céu azul. Durante a caminhada até a rodoviária, vou admirando as grossas muralhas que cercam a cidade fortificada. A última visão que tenho daquela Toledo dantanho é a da Porta Nova de Bisagra, uma das 4 por onde se entra e sai da cidadela. Lastimo a maneira vapt vupt de visitar esta jóia medieval, ela merecia mais tempo pra ser melhor apreciada. Mesmo assim, saio contente porque tive a oportunidade de conhecer mais um pouco desta época da história, a fascinante Idade Média.
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