Apesar da adulação, da insistência, Raul não topa me acompanhar na pernada de 3 dias até o cume do Jbel ou Pico Toubkal. Prefere ficar em Marrakech, no riad, onde já fez várias amizades. Eu teria curtido muito a sua companhia mas, enfim, não há como forçar um barbado a acompanhar sua mãe. Fã do princípio budista da impermanência às vezes gostaria de que os sentimentos se cristalizassem. Por exemplo, Raul, quando pequeno, se eu o convidasse pra ir ao inferno, iria feliz da vida. Agora nem pro céu aceita. Embora aparentemente pareça que me lamento, é só aparência. Cada qual no seu quadrado, vida que segue, e aceito na boa as mudanças que a vida me traz. Voltando, pois, ao Parque Nacional Toubkal. É o mais antigo dos 12 que há no Marrocos, fundado em 1942, situa-se no Alto Atlas. As montanhas do Atlas consistem em várias cadeias montanhosas que se estendem por 2.410 km desde a costa Atlântica de Marrocos até ao Cabo Bon, na Tunísia Oriental. No Marrocos, esta cordilheira exibe as maiores altitudes do norte da África, destacando-se o Jbel Toubkal com 4.167 metros, o segundo cume mais alto do continente africano, só perdendo pro Kilimanjaro, na Tanzânia. Assim, no dia seguinte a minha chegada do tour ao Sahara, parto de Marrakech sem meu filho levada por uma agência contratada pelo Whatsapp até Imlil Village. Contratos modernos são agora via celular! Imlil Village, a porta de entrada aos treks no PN Toubkal, encontra-se a 700 metros acima do nível do mar e distante 80 km de Marrakech. Há 3 vales no PN Toubkal: Imlil Valley, Imnan Valley e Azaden Valley. Nos 3 vales há 30 vilas assim divididas: Imlil Valley: 11 vilas, Imnan Valley: 10 vilas e Azaden Valley com 9 vilas. Em cada vila vive cerca de mil almas. Quando chego na vila Imlil de táxi, o dono da agência, que está me esperando, me conduz a um café onde me oferece chá. Lá sou apresentada ao guia Hassam e ao muleiro, também chamado Hassam, que acumula a função de cozinheiro. Antes da partida, alugo luvas e consigo emprestado um par de bastões porque quando saí do Brasil nem imaginava fazer alguma atividade esportiva desse tipo. Neste 1º dia, vamos fazer uma caminhada de esquenta visando o grande momento do trek: o ascenso ao Toubkal no 1º do ano!! Para tanto o guia escolhe a subida ao Tizi ou passo N’tmatert, situado a 2.267 metros dado o desnível de 1.500 metros desde a vila Imlil. Durante o caminho, cruzo bosques de coníferas sob um céu azul e sol brilhante. Ao chegarmos ao passo, o cozinheiro prepara almoço que como ao ar livre enquanto avisto, no distante vale Azaden, Tizi M'azik, outro passo de 2.445 metros; à esquerda despontam os 3.650 metros do Pico Agulzim e abaixo, no fundão de Imnan Valley, parecendo de brinquedo uma de suas vilas. Terminada a pernada, nos dirigimos pra Ait Souka, uma das 11 vilas do Imlil Valley, onde me hospedo num hostal super familiar, que vem a ser a casa do irmão do dono da agência que contratei em Marrakech. O canto do muezin chamando pra prece ecoa na vila à tardinha. Meu quarto é bom e tem banheiro privativo. O sinal do wifi é forte permitindo que eu veja filme na Netflix enquanto espero a janta. À noite faz frio pra caramba, afinal estamos a 1.500 metros de altitude. Dia seguinte, véspera de ano novo, deixamos Ait Souka, não sem antes o simpático dono do hostal fazer com que eu leve sua jaqueta, porque a minha está com um problema no fecho éclair. Que gentil esse bérbere!! Passamos pela vila Armed, maior vila do Imlil Valley onde o guia e muleiro nasceram, entrando no Mizane Valley onde o terreno começa a se tornar mais íngreme porque agora é só subida. Fazemos uma paradinha num armazém onde além de trocentas bugigangas, dentre elas carregador solar de celular, vende-se delicioso suco de laranja espremida na hora. A trilha é bem demarcada e dá pra se avistar as encostas das montanhas do Atlas cada qual, é claro, com um nome próprio. Nem me arrisco em perguntar os nomes delas porque a língua realmente é muito complicada de se entender. Quando chego aos 2.300 metros onde a vila de Sidi Chamarouch está localizada, sou agraciada com o som duma guitarra bérbere tocada por um jovem sentado num terraço. Mais adiante, o som dum tambor reverbera. Que beleza, meu bom Alá!! Estou encantada com tanta musicalidade em plena montanha do Atlas! Aliás, a música para os bérberes é algo muito natural e levada super a sério porque através das canções a história milenar deste povo guerreiro é passada de geração em geração. A vila Sidi - significa santo - Chamarouch é ponto de peregrinação pros mulçumanos e seu santuário fica no interior duma grande rocha arredondada pintada de branco. Há lojas vendendo artesanatos, pousadas e restaurantes com terraços. Num deles, sou acomodada, sendo-me servido o almoço. Sem muita fome devido à altitude, belisco alguns pratos, embora sejam apetitosos. A partir de Chamarouch, neve e gelo começam a dar pinta, mantendo-se o terreno, assim, bordado de branco até o refúgio. O tempo está excelente, sol radioso e temperatura agradabilíssima. Chego às 16 e 30, após 7 horas de caminhada, no lugar onde foram construídos 2 feios prédios de alvenaria escura que vêm a ser os dois refúgios de montanha do Jbel Toubkal. O mais antigo, com 100 anos chama-se Clube Alpino Francês, o segundo, bem mais novo, tem apenas 14 anos. Chão e encostas de montanhas ao redor cobertos de neve. Segundo meu guia tive sorte de ter sido acomodada no Clube Alpino porque o outro, comenta ele, não é tão bom. Lotadaço de jovens o refúgio, a maioria europeus, uns poucos africanos, e um que outro asiático. Os coroas são raros, não preenchem uma mão. Meu quarto no primeiro andar deve ter uns 12 beliches cabendo 24 pessoas. À noite, um casal, integrante dum grande grupo russo, se fantasia de papai noel e mamãe noel pra diversão de seus conterrâneos. Aliás, os russos destacam-se do restante dos demais hóspedes devido à sua animação: gargalhadas e gritaria reverberam por bom tempo num dos salões onde se faz as refeições. Protagonizo um bate boca com uma marroquina e seu namorado que “furtaram" meu beliche enquanto eu estava no refeitório, tudo porque queriam dormir lado a lado durante a noite. Ela se queixa dos meus modos ao dizer vous n'est pas gentil, ao passo que eu pego pesado e solto you are thief of bed. O namorado não dá um pio durante nossa discussão. Na madrugada do 1º do ano, saímos eu e meu guia às 5 e 15 do refúgio. A temperatura está em – 5º C. Calço crampons desde o refúgio, numa subida forte, até o Tizi N’Toubkal, quando então os sapatos de metal são retirados pois o terreno daqui pra frente é super pedregoso com enormes rochas ladeando a trilha. A 100 metros do cume o terreno se torna “plano”, livre de qualquer rochedo, já se avistando a estrutura metálica que sinaliza a reta final, ou seja, os 4.167 metros do Jbel Toubkal. É assim que às 9 da manhã, adentro 2020 não só com o pé direito como com o esquerdo pisando no topo da montanha mais alta do Marrocos. E com direito à trilha sonora The Wall, do Pink Floyd, que está rolando do celular dum britânico. Pouco depois, dois marroquinos põem pra tocar um jazz super sensual cantado por uma cantora bérbere. Uma farra musical toma conta do cume do Toubkal. Um casal de belgas oferece chocolates e o britânico me passa sua garrafinha de uísque pra eu dar um gole. Alá meu bom Alá, que baita entrada de ano me proporcionaste....shukraan lak!!
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