Pretendo com este blog descrever viagens que fiz e farei por este tão lindo planeta, resgatando da memória as impressões armazenadas, algumas já esmaecidas pelo tempo, outras prudentemente registradas pelo olho mágico das lembranças fotográficas.
Acordo
às 5 da manhã com o galo cocoricando a milhão, tarefa que ele cumpre
diligentemente até 8 horas quando então levanto e saio da barraca. Nem acredito
no que vejo: após 2 dias de céu nublado eis o sol exibindo-se meio sem graça,
mas não importa, tudo é melhor do que aquele ambiente cinzento que nos
acompanhou durante 2 dias inteiros!! No desaiuno, liquidamos o resto do queijo
que sobrara da janta. Os dois cachorros de Feliciana espertamente estão sempre
enrodilhados diante do fogo de chão. Volta e meia ela ralha com Peluce, hilário! Aproveito que a fofa da velhinha está quietinha, mateando,
pra puxar conversa. Queixa-se de que o dedo envolto em curativo dói. Indago, então, como conseguiu se machucar. Ela responde que
rasgou o dedo num prego que prende a ferradura à pata do cavalo tentando sei lá
se tirá-la ou se tentando raspar o casco do animal.....coitadinha! Partimos sem
que eu consiga me despedir de Jose porque ele foi buscar mula e cavalo campo
afora, descuidadamente deixados soltos ontem à noite. E sabemos, depois,
quando o arriero telefona pra Fernando, que a demora foi bem mais duma hora até
resgatar os 2 bichos! Feliciana nos leva até o final do páteo e, na despedida,
lembra Fernando – pela décima vez, haja paciência - que não se esqueça de
transmitir ao filho as encomendas que o guri deve lhe trazer quando vier
visitá-la. Já afastados da casa, ouvimos sua vozinha fazendo as mesmas recomendações:
"pilhas pro rádio, que o filho não esqueça de trazer". Um amor essa
Feliciana! Às 9:30 já nos encontramos subindo o morro e à medida que ganhamos
altura, aparece com nitidez a Quebrada Cuesta Grande e mais adiante a Quebrada
Calderilla. A manhã, embora muito fria, está estupenda, céu claro e um charmoso
colar de nuvens rodeia os cerros em frente. Paramos na Abra Sarapura onde há
outra casa pertencente à Feliciana. Um lindo gato cinza e branco, super
carinhoso, arqueia o lombo e se esfrega em mim, miando. Não deve estar mal de
ratazanas nesta banda porque o bichano se mostra bem nutrido. O visual daqui de cima
é estupendo, o mais bonito pra mim de todo o trekking. Dá pra visualizar o trajeto feito desde o 2º dia a partir da Abra de la Cruz e os cerros que se sucedem,
alguns deles formando outro tanto de pequenas quebradas. Porque distantes os mananciais de água, não se acampa neste posto. O que é uma pena porque
seria beleza pura acordar e dar de cara com tal cenário! Do posto
Sarapura,percorremos, não por muito
tempo, suaves colinas onde preponderam gramíneas. Um mar de cerros verdejantes
é o que tenho diante de mim. Adentramos, finalmente, na famosa yunga, que vêm a
ser bosques nebulares característicos das montanhas andinas. Tão úmido este ambiente que
pedras, troncos e galhos de árvores estão fartamente cobertos por musgos.Paralelo à trilha, escuto vindo do estreito
córrego, pontilhado de minicascatinhas, o incessante e agradável rumorejar da
correnteza batendo nas pedras. Nada fácil caminhar nesta trilha aberta em meio
à cerrada vegetação, o que me traz à lembrança nossa mata atlântica. A maioria
das pessoas temem subidas, eu, entretanto, me cago nas baixadas. Esta, além de
íngreme, tá cheia de pedras soltas. Como tem chovido muito, graças ao El Niño,
o terreno em diversos trechos revela-se bem enlameado. Entre um bosque e outro,
zonas descampadas onde domina descolorido capinzal. Aproveitamos pra comer algo
quando chegamos ao posto de Calixta, abandonado após sua morte. Numa das
janelas, o costume regional de desenhar a giz uma cruz rodeada por corações indica o recente
falecimento da proprietária. Dramática mudança de
tempo a partir do posto de Calixta. O céu nubla repentinamente e a neblina toma
conta da atmosfera. Sucede-se a uma curta e áspera subida nova descida que
desemboca numa clareira. Aqui acontece o imbróglio onde Fernando se perde e não
encontra a continuidade da trilha. Começa então uma sucessão de entra-e-sai no
que ele supõe seja a trilha principal. Triste engano: revelam-se apenas picadas abertas pelo gado,super fechadas, porque pouco
transitadas, maior chatice percorrê-las, galhos barram o caminho e
espinhos se agarram à roupa. Nada paciente, começo a me irritar com aquela
galharia infernal e não vejo a hora de terminar a pernada. Após uma hora perdidos
saltando dum filo a outro filo, como fala Fernando, acertamos o rumo e
engrenamos lomba abaixo, avistando, finalmente, San Lorenzo e mais adiante
Salta....ebaaa! Devido a outra desorientação de Fernando damos não em San Lorenzo,
conforme o programado, e, sim, em Las Costas, um de seus distritos.Tadinho de Fernando, mais uma vez, se perde, nos fazendo descer por uma piramba do outeiro de La Cruz
Blanca. Eu, pensando que a aventura terminara, percebo, louca de medo, que posso num vacilodespencar e quebrar o pescoço. Enfim, às 17 horas, após 14 km de pernada, alcançamos a estrada onde Pancha nos resgata. Hospitaleira, a mulher de Fernando, trouxe café (graças a
deus não adoçado) e um delicioso pão feito em casa, receita de família. Estou
super cansada razão por que recuso o amável convite de meu guia pra comermos
empanadas regadas a cerveja preta numa bodega de San Lorenzo. Dou minha missão
por cumprida e o que quero é singelo: um banho quente e caminha assistindo
televisão, hehehe!
Choveu
durante a noite. Quando acordo, as gotas de chuva cristalizaram em cima da barraca.
Faz um frio como há muito não sentia. Os homens encilham os cavalos,
animadíssimos, preparando-se para a iminente cavalgada. Juan alvoroçado já está
num alegre tragoléu. Mistura numa garrafa de 1,5 litro de refri vinho e coca
cola guardando-a num dos alforjes que Fernando lhe trouxe. Ontem quando o guia
lhe entregou o par de bolsas, ele se mostrou tão encantado como criança em dia
de aniversário. Agora 10 horas as nuvens que encobrem o cerro Verde
dispersaram-seum pouco embora o céu
continue nubladíssimo e o frio não dê trégua tanto que os dedos das mãos ardem
de dor embora eu use luvas. Terminados os preparativos, os rapazes despedem-se
cerimoniosamente estendendo as mãos ao passo que João me pespega uma beijoca na
bochecha. E lá vão eles descendo o cerro rumo ao rio Calderilla numa animação
juvenil. Pergunto a Pascoala se não se sentirá só sem o marido. De pronto,
responde "me hace falta en las tareas domesticas", e trata de entrar
no curral onde se encontram as ovelhas, ordenhando-as para com o leite fazer
queijos. No desaiuno, ela coloca à mesa um belo naco de seu queijo de coloração
branca e sabor suave. Enquanto bebo meu chá com leite, lembro do que Berta
contou hoje pela manhã quando me convidou pra ver as ovelhinhas recém paridas.
De que há ovelhas-mães que se recusam a alimentar suas crias, o que obriga o
dono a apartá-las do rebanho, encerrando-as juntamente com os recém-nascidos
num espaço à parte de modo a forçá-las a alimentá-los. Neste posto também o
rádio fica dia e noite ligado porque pode algum parente de Juan ou Pascoala
enviar alguma mensagem. Entretanto, a notícia que o locutor transmite é um
pedido prum tal de Calixto levar 2 cordeiros pro velório duma senhora de nome
Modesta. Vai ter festão pelo visto no bota-fora da defunta! Deixamos o posto
Reinaga às 10:45 percorrendo por 2 horas uma baixada. Durante a descida, dá pra
ver perfeitamente o rio Vuelta Grande serpenteando pela quebrada homônima
formada pelos cerros Verde e Loma Grande. A paisagem perdeu bastante sua
aridez, e a vegetação toma conta dos campos donde brotam gramíneas e coirones.
Cruzamos um pequeno bosque de alisos, árvore de médio porte e tronco fino,
cujos galhos a esta época do ano se encontram desfolhados. Abre-se no céu uma
pequena janela de azul que nos dá esperança de que o tempo irá melhorar. Pouca
demora, o olho azulado cede espaço novamente ao insosso acinzentado. Maldade
das grossas esse falso alarme de bom tempo, ala putcha! Paramos na outra casa
que Juan tem à margem do rio Calderilla onde se encontra uma de suas filhas. A
moça mais os 3 filhos está se preparando pra subir o morro e visitar a mãe
durante o fim de semana. Aproveito e retiro minha calça impermeável porque
desconfio que se não choveu até agora não choverá mais. Como este tipo de calça
esquenta muito o corpo, fazendo com que eu transpire em abundância, é melhor me
precaver da perda de fluído corporal. O nevoeiro se dissipou de vez, o que
restam são flocos esparsos de nuvens apesar de o céu permanecer com aquele
aspecto pesado, como se tivesse com gana de encostar na terra. Caminhamos,
então, por uma estrada onde é possível veículos transitarem. Segundo Fernando é
a parte menos atrativa da jornada. Encravado no alto duma colina, o guia
aponta o que parece ser um cemitério. Explica que os nativos da região
constroem cemitérios em lugares altos de modo a perpetuar costume herdado dos
incas em deixar os espíritos dos mortos mais perto do rei sol. Ao chegarmos a
uma encruzilhada, Fernando indica o lugar não só como ponto de resgate se
necessário como o término da versão de 3 dias do Trek de las Nubes. Saímos da
estrada e passamos a caminhar no irregular terreno da margem coberta de
pedregulhos do rio Calderilla. Como temos de passar pra sua outra margem,
cruzamos a correnteza se equilibrando numa improvisada ponte feita de tronco de
árvore. A partir daqui a paisagem muda radicalmente: não há mais vestígio algum
daquele descampado árido que percorri durante 2 dias consecutivos, a vegetação
é onipresente, forrando de verde os cerros do cume ao sopé. E surgem arbustos
com delicadas e pequenas flores amarelas e vermelhas. Nem bem ultrapassamos o
Calderilla, temos de cruzar outro rio, o Cuesta Grande, sem sinal de tronco ou
pedras improvisados de ponte. Fernando procura no rio uma passagem que seja
rasa >porém não encontra nenhum trecho onde possamos cruzar sem molhar os pés. O
jeito foi arrastar um pedaço de tronco e jogá-lo sobre o leito empedrado do
rio. Paramos pra almoçar e assim que terminamos de comer recomeçamos a andar.
Com este tempo úmido, o frio se faz sentir assim que se fica muito tempo
parado. Mais uma hora e 30 minutos de caminhada em terreno plano seguida duma
subida leve duns 40 minutos ao longo do rio Cuesta Grande, quando então
passamos a enfrentar um íngreme ascenso de curta duração morro acima. O que
compensa é parar vez por outra e apreciar o rio lá embaixo confinado na
quebrada Cuesta Grande. Após 5 horas e 20 minutos de pernada, calcorreando em
torno de 12 km, estamos finalmente no posto Sarapura pertencente à Feliciana,
ostentando recente viuvez. Há duas versões sobre a causa mortis do marido. A
oficial declara infarte. Já as más ou boas línguas (depende do ponto de vista)
apontam asfixia por ingestão de folhas de coca, morte nada incomum nestes
ermos. Isso ocorre porque os homens, que passam o dia mascando coca, lá pelas
tantas se embriagam e deitam esquecidos do que levam na boca, se engasgando com
a maçaroca de erva durante o sono.Mora
com Feliciana uma vizinha, menina duns 13 anos. Tímida em nossa presença, a
guria só fala quando algo lhe é perguntado e mesmo assim por monossílabos. A
anciã é magrinha, de pequena estatura, e seus pequenos olhos escuros miram
profundamente o interlocutor. Fala sozinha enquanto faz as tarefas domésticas.
Irrequieta, nem bem senta já levanta pra fazer sei lá o quê. Sua risada,
contudo, é surpreendente: forte, alegre, contagiante. Na
igualmente enfumaçada cozinha de Feliciana, enquanto Jose prepara uma janta
supimpa - massa com chuletas de porco ao molho barbecue - degustamos uma picada
do queijo de ovelha que Fernando comprara da querida velhinha, regado com o
delicioso tinto saltenho. Que happy hour!!
Quem
dorme em barraca, sabe bem quão entrecortado é o sono. Cada vez que me viro,
acordo, mas graças a deus volto a dormir rapidinho. Por causa desse
dorme-acorda-dorme, escuto fortes rajadas de vento durante a noite. Quando
acordo, o dia continua bonito como ontem: céu azul com fiapos de nuvens que não
empanam o brilho do sol. Jose veste-se
com os trajes típicos de vaqueiro: uma proteção de couro que cobre a parte
anterior de ambas as pernas, tipo uma saia sem a parte de trás. É um homem alto
e forte com uma bela pança. Já Fernando é mignon e magro. Vaidoso, queixa-se de
que está com sobrepeso na região abdominal. Eu, também, digo pra ele, hehe.
Berta, quando chego na cozinha pro desaiuno, está escutando rádio. Como aqui
não pega celular, o rádio é o meio com que as pessoas se comunicam entre si
nestes ermos. Em sendo assim, Berta, a sorridente, tem como companhia o radinho
de pilha enquanto lava a louça. Não para de sorrir nem quando conta que o
marido a abandonou por uma paraguaia. Fala um bom espanhol porque viveu em
Buenos Aires trabalhando como doméstica durante 20 anos. O fogo de chão já está
aceso de modo a esquentar a água pro café. Saímos às 11:00 e o trajeto é
praticamente plano até a Abra de la Cruz.
Quando lá chegamos, me viro pra apreciar o vale onde fica o posto de
Berta e a Quebrada Incahuasi; bem ao fundo os nevados Acay e San Miguel de
la Poma, dois cerros de 5 mil metros muito procurados por montanhistas. A
partir da abra uma pequena descida até a paragem Vuelta Grande onde há uma
casinha e um curral feitos de pedras onde dois cavalos nos miram com olhares
sossegados. A partir dali entendo porque o nome do trek é de las nubes. Não só
o vale de Lerma como a cidade de Salta, se não fosse por isso, dariam pra
ser vistos daqui de cima das montanhas, contudo, se encontram encobertos por uma massa
compacta de nuvens. Uma pena que não dá pra se distinguir nadica de nada sob a
espessa bruma. Parece um gigantesco lago branco suspenso no ar! Dois grandes
cerros que não se deixaram ainda envolver pela neblina se defrontam, o da
esquerda é cerro Loma Grande em cuja encosta é visível um sendero por onde
subiremos; já o da direita chama-se cerro Verde. Ambos formam a quebrada Vuelta
Grande cuja abra recebe o nome de Planchones. Quando iniciamos a subida do Loma
Grande, a cerração se instala de vez na paisagem, Caminhamos praticamente o
resto do tempo dentro de nuvens, tanto que Fernando em tom jocoso observa
“estamos dentro de un gigantesco nebulizador, Beatriz”. Parada para almoço
quando então, inevitavelmente, discutimos sobre o clima. Fernando adverte-me
que se chover forte amanhã será obrigado a pedir resgate via telefone satelital
com o que será enviado um 4x4 até uma estradinha cujo acesso está a 15 km.
Consultado, Jose, um pessimista, opina, é claro, pela possibilidade de chuva no
decorrer do período. Eu, absolutamente desencanada quanto à questões
meteorológicas – pode estar cinzentézimo o céu e até garoando que nada disso me
afeta ou impede de fazer as coisas -,
assevero que San Pedro não vai nos deixar na mão. Jose limita-se a me
lançar um olhar descrente sem nada comentar. Rebanhos de ovelhas ao longo do
caminho são cuidados por cães vigilantes que rosnam pra nós quando passamos.
Basta, contudo, um gesto de mão e um xô xô pro animal recuar. Ainda em meio à
forte cerração, o que baixou muito a temperatura, só descida até o posto
Reinaga onde chegamos às 14:30. Pelos meus cálculos devemos ter caminhado uns 6
km. O destaque na paisagem são pedaços ainda sangrentos da ovelha recém
carneada pendurados em ganchos presos nos galhos duma árvore. Sobre o muro de
taipa, que rodeia a residência, um conjunto de 3 casas de pedra em formato de
U, a pele da ovelha jaz estendida exibindo o couro branquinho. Juan, o
proprietário, é um setentão baixote, gorducho e alegre. Já sua mulher,
Pascoala, é séria e mal consigo entender seu espanhol. Não rola entre nós a
mesma química que rolou com Berta. Possui outro temperamento a roliça senhora
cuja idade, 74 anos, aparenta menos. Ali já se encontram oito jovens, amigos de
Juan. Vieram a cavalo de San Lorenzo para amanhã buscarem um gado. Sentados ao
redor duma mesa, embaixo dum telheiro, o frio é acabrunhante menos pra eles que
bebem pra caramba. Num caldeirão, um dos jovens acendeu um braseiro que
transmite um pouco de calor ao ambiente aberto. Uma caneca passa de mão em mão.
Não resisto e peço pra provar a beberagem, resultado de erva mate e água,
coada, mais um tanto de graspa. Taí, gostei! Jose, num fogãozinho de 2 bocas,
prepara uma panela de lentilhas com batatas e linguiça. Com fome e porque o
prato está saborosíssimo, peço bis. Juan, já bem altinho de tanto beber uma
mistura de vinho com coca cola, nos oferece assado de ovelha. Macia e
suculenta, a carne está nota 10. E, mais uma vez, Fernando enche meu copo com
aquele tinto saltenho muito bem vindo pra acompanhar tão agradável ceia. Eu
adoraria ficar mais tempo usufruindo de tão alegre companhia mas o frio está
mesmo de renguear cusco. Por isso, me despeço desejando boa noite a todos e me
toco pra minha barraca, armada um pouco adiante das casas, abrindo alas em meio
à névoa e à escuridão das nove da noite. Como foi super tranquila a pernada sem
nenhuma subida ou descida forte, leio algumas páginas de Fundação, livro
escrito pelo mago da ficção científica, Isaac Asimov. A voz alta de Juan se
destaca entre as demais seguindo-se estrondosas gargalhadas. Ala putcha,
vidinha bem boa esta!
Saída
da estação rodoviária às 08:00 com o guia Fernando, um mendocino, sessentão
como eu, que se estabeleceu em Salta após ter sido guia de montanha na região
do Aconcágua, tendo acumulado a marca de 10 cumes na mais alta montanha das
Américas. Inicialmente, iria fazer o trek com uma família porteña mas sei lá o
motivo de eles terem adiado pra julho o programa. Entramos no busão e
percorremos 70 km ao longo da Ruta 51 até o pontodonde iremos começar a
caminhada. Esta ruta, super transitada, em especial por caminhões, termina no
Paso Sico fronteira com Chile, daí continuando com outro nome até o porto de
Antofagasta, motivo de sua importância pros argentinos. Excitada com a
aventura, dormira pouco a noite, daí porque cochilo quase todo o trajeto
perdendo a bela paisagem oferecida pela Quebrada del Toro, garganta com
aproximados 90 km de extensão. Tanto que lá pela tantas escuto Fernando
chamando minha atenção para ver os trilhos suspensos do famoso Tren de las
Nubes. O busão nos larga na frente da Finca Incamayo às 10:15 onde o arriero
Jose já ali se encontra. Irá transportando a bagagem uma mula (o bicho suporta em
seu lombo até 60 kg), ao passo que ele irá a cavalo. Enquanto os homens finalizam os
preparativos de prender as sacolas no animal, curto o impressionante barranco ocidental, uma das paredes que forma
a Quebrada del Toro, e a coloração avermelhada de sua rocha permeada de
canaletas como se fossem minigargantinhas.O Trek de las Nubes por mim rebatizado Sendero de las Nubes (soa mais simpático, não é mesmo? afinal, estou num país onde o idioma é espanhol), erroneamente
apontado como um recorrido na pré-cordilheira andina, em realidade, percorre
serras subandinas. Fernando, como não me conhecia, tomou a decisão de não
iniciar a caminhada a partir do posto da gendarmeria Ingeniero Maury, como é costume, desistindo de entrar pela Quebrada del Toro, e, sim pela paragem da Finca
Incamayo, 18 km antes, penetrando via Quebrada Incamayo. Por quê? Quis
com isso me poupar 200 metros a menos de desnível. Andamos pouco tempo dentro
da Quebrada de Incamayo porque logo se torna impraticável caminhar ali dentro:
estreita, tem saltos que não se pode contornar. Assim, começamos a subir seu
flanco oeste, bem íngreme e com muita pedra solta. Alcançamos sua crista
percorrendo-a por bom tempo enquanto à esquerda avistamos a sinuosa Ruta 51, a
Quebrada del Toro e vários cerros de 4 mil metros que se situam além como Bayo,
Redondo, Camara e Manzana. À direita, o Cerro Pacuy domina a parede oposta da
Quebrada Incamayo. A paisagem é árida, predominando cactus (coirones), alguns
com quase 5 metros de altura. Em toda esta zona há muitas ruínas incas como corrales e uma antiga mina explorada pelos incas e posteriormente
pelos espanhóis. Contudo, remonta a 600 anos e, portanto, pré-incaica, a bem
conservada pukara, localizada estrategicamente entre as Quebradas del Toro e
Incamayo, para o exato propósito de servir como torre de vigilância. Embora
friozinho, o dia está lindo, céu azul cujas nuvens baixas emolduram as encostas
dos cerros.São mais de 2 horas de
intensa subida até que pelas 14 horas paramos para almoçar. O menu é um baita sandu
com tomate, alface, queijo e frios mais bolachinhas doces e salgadas. Após mais
2 horas ganhando altura, enveredamos a leste, iniciando a descida e retomando a
caminhada pelo interior da Quebrada de Incamayo. Cruza-se diversas vezes o
leito mirrado e estreito do córrego Incahuasi e, como num passe de mágica, a
paisagem muda, passando a se exibir mais verdejante. Abundam arbustos de pequeno
porte e chama a atenção a interessante yareta, planta que chega a ter até 3 mil
anos de existência. Ignorante em Botânica quando olho penso que se trata duma
pedra recoberta de musgo, hehe. Logo a vegetação mais "abundante"
cede novamente lugar à aridez. E sobre uma colina, outras ruínas, estas
declaradas monumentos históricos, o chamado sítio arqueológico Incahuasi.
Destaca-se pela boa conservação a Silla del Inca. Trata-se duma casa de banhos
onde os incas construíram um sistema de encanamento, puxando água dum córrego,
de modo a que pudessem se banhar sob um cano que lhes servia de ducha. Pensa
que eles, os incas, tomavam banho de pé? Hahaha, só não!! Sentadinhos
confortavelmente num banco de pedra, daí a origem do nome silla del inca.
Também dura 4 horas a segunda metade da pernada, a da baixada, porém sinto um
cansaço incomum. E me queixo pra Fernando que estou realmente começando a
sentir o peso dos anos. Ele põe os pingos nos "is", esclarecendo a
razão: ascenso de quase 1000 metros já que da Finca Incamayo, situada 2.400
metros estamos agora a 3.370, aqui, no posto de Berta.....ufa, que alívio, nem
me tocara dos efeitos da altitude!! Foram 8 horas de atividade com poucas e
breves paradas: saída às 10:45 e chegada às 17:45, percorrendo bem uns 14 km!! O local de nosso
acampamento tem até algumas árvores, desfolhadas, todavia, nesta época do ano.
Mais adiante, 3 edificações de pedra com tetos e portas feitas de cardones
secos, técnica de construção herdada dos antepassados incas. A falante e
simpaticíssima Berta, nascida Bernabia, vive mais solita neste ermo que
acompanhada porque o sobrinho sempre que pode se manda pro vilarejo mais
próximo. O falante Jose, além de arriero atua também como cozinheiro. Prepara uma
galinha deliciosa, super bem temperada, na grelha ao passo que Fernando se
encarrega da salada e Berta cozinha papas andinas, pequenas e saborosas. De
bebida,o guia apresenta uma garrafa de
vinho salteño...que requinte...uau!! A única coisa que estraga um pouco a ceia
é a fumaça desprendida pela yareta, usada como combustível pra alimentar a fogueira acesa no chão batido da pequenacozinha. Arde pra caramba os olhos. A única que não
se abala é a sorridente Berta. A noite, iluminada por uma quase lua cheia, está
super estrelada, tanto que nem preciso usar lanterna pra me locomover.Cansada, janto e me mando pra barraca, nem
vontade de ler tenho. A temperatura está fria mas não o suficiente pra que eu
precise dormir de gorro ou de luvas...ebaa!!
O
projeto inicial das curtas férias que programo para junho é pedalar no vale
de Calchaquies, situado na província argentina de Salta. Contudo, por falta de
quórum (tem de ter no mínimo 2 pessoas) não rolou. Ainda assim, minha
curiosidade sobre essa região da Argentina se manteve e consegui me encaixar
num grupo pra fazer o Trek de las Nubes. Contatos estabelecidos com a MTB Salta (http://mtbsalta.com/),
deixo Porto numa segunda ao ½ dia rumo àquela cidadecom conexão em Buenos Aires. Por
causa da alta do dólar, a brasilerada trocou Miami e Nova York por Montevideo e
Buenos Aires. Embora saia mais em conta viajar a estas capitais, ainda assim a
vantagem não é lá muito grande por conta da carestia que inflaciona o preço dos
bens e serviços em ambos países platinos. Em frente ao posto do Banco Nacional, no
Aeroparque, forma-se uma longa fila de compatriotas ansiosos por trocar seus
desvalorizados reais pelos igualmente depreciados pesos. Espero quase uma hora
até que chegue minha vez porque, apesar de haver dois caixas, um deles raramente
dá o ar da graça. Aliás, os ditos funcionários exibem certo desprezo enquanto
contam as cédulas a serem cambiadas. Será que se eu entregasse millones, eles perderiam essa pose? Nem esquento pela
demora porque me sobra tempo até embarcar no avião que me levará a Salta. Portanto,
trato de me distrair puxando conversa com um casal de paulistas enfileirados atrás
de mim. Não dá nem 10 minutos e outros brasileiros se juntam
a nós em animado conversê. Via de regra, se passa mais tempo esperando conexão
do que voando. No meu caso, o tempo total de voo entre Salta e Poa deveria
durar 4 horas se fosse direto. Como há a tal troca de aeronaves (tecnicamente,
chamada conexão) em Buenos Aires, ali demoro igual tempo à soma dos 2 voos, ou
seja, chego em Salta 8 horas após ter partido de Porto Alegre!! Bueno, a bem
da verdade, meu conhecimento sobre Salta foi superficial porque passei mais tempo
explorando suas serranias distantes 70 km. O dia de minha chegada nem conta porque aterrisso em Salta às 20 horas da segunda-feira. Sobram então dos 8 dias de férias pra curtir a
city, o dia seguinte, mais domingo e segunda posteriores ao trek. Na terça,
então, vou à sede da MTB Salta e acerto com Nacho o Circuito Yungas, pedal
de meio dia que inicia às 10 horas. Embarcamos numa flamante 4x4 e passamos num
hostal pra pegar mais gente. São duas moças, gêmeas, e um rapaz, namorado de
uma delas, naturais da Irlanda. Simpáticos, pedalam bem embora não sejam
praticantes assíduos do esporte. Pena que o pesado sotaque irlandês me impeça
de socializar mais com o trio. Rodamos de carro uns 15 km até Finca de Las
Costas, situada em San Lorenzo, município limítrofe à Salta. O pedal de 12 km é
super light. Dura com intervalo pra lanche 2 horas. Percorrem-se estradinhas de
chão batido com subidas e descidas suaves, algumas delas ladeadas de plátanos exibindo
bela coloração avermelhada, típica do outono. Nesta região chamada Yungas, a vegetação existente
é formada por compactos bosques que crescem nas encostas das serranias que
circundam o vale de Lerma. Terminada a atividade, almoço num restaurante em
frente à Plaza 9 de Julio que tá valendo como janta porque já são 16 horas! A
fome é tanta que devoro 2 suculentos medalhões de filé au poivre. Aprovo o
vinho tinto produzido na região de Calchaquies que pedi pra provar. Afinal, não
são só nos parreirais de Mendoza que frutificam boas videiras. Nos 2 dias
posteriores ao trek, fico praticamente todo o domingo no hotel, deitada,
assistindo aos incrivelmente cafonas programas da televisão argentina. A uma
porque quadríceps e panturrilhas estão bem doídos dos vários descensos durante
o trek. E a dois pela justificada preguiça resultante da exaustiva atividade
física. Pra não dizer que não saio, vou almoçar num restaurante em frente à Plaza
9 de Julio, ponto central da cidade onde destacam-se o Cabildo, a catedral e o museu
de Alta Montanha. Neste, o único prédio por mim visitado, são expostos, um por vez, os 3 meninos incas encontrados
mumificados no vulcão Llullaillaco. Impactante se deparar com aquele pequeno ser,
curvado sobre si, com a cabeça pendente entre os joelhos, como se estivesse escondendo
o medo diante da iminência de seu sacrifício. Na segunda, reservo a
manhã pra ficar na cama, lendo e curtindo os programas televisivos discutirem
ad nauseam a notícia que mesmeriza os
argentinos: a prisão de Jose Lopez, ex-secretário de Obras Públicas do governo de los K – como os argentinos se referem aos Kircherner -, pego com a boca na botija
tentando enterrar mais de 8 milhões de dólares no jardim dum convento abandonado.
Mas as notícias sensacionalistas não param por aí:a também espetacular
detenção do procuradíssimo narcotraficante Perez Corradi, no Paraguai, merece igual atenção porque dizem as "más línguas oposicionistas" que sua
atividade ilegal bem pode ter recebido uma forcinha do antigo governo dos K. Como tenho
de almoçar, sou obrigada a sair e escolho o tradicional Criollita, famoso por
suas empanadas. Mais que as empanadas, me delicio mesmo com os tamales. Caprichosamente
enrolados em palha de milho, lembram no formato pequenos bombons. Pra não dizer que
sou nojenta, decido à tarde passear num daqueles busões de 2 andares mas quando
chego no quiosque o raio do veículo já havia saído. Faço então um city tour numa
van cuja única estrangeira sou eu, o restante, argentinos de diversas
províncias do país. Santo deus, o apelo comercial prepondera sobre o cultural, de
tal modo que, em quatro paradas, 3 exibem as infalíveis tendas de artesanato
regional. Mesmo assim, a narrativa do guia durante as 3 horas e o giro pela cidade
e seus arredores, como a bela quebrada de San Lorenzo, valem o preço quando não se tem
muito tempo pra conhecer um lugar. Apesar da breve permanência em Salta, percebo
que em dias ensolarados os cerros ao redor da cidade revelam a plenitude de seus
verdejantes perfis.Que em algumas de suas praças e ruas foram plantadas
laranjeiras, nesta época do ano, carregadinhas de frutas!! Que
Salta la Linda, como seus habitantes orgulhosamente a chamam, se situa no
noroeste da Argentina, aos pés da pré-cordilheira dos Andes, a 1.187 metros acima do
nível do mar, espalhando-se pelo vale de Lerma. Que vivem em seu perímetro
aproximadamente 500.000 habitantes. Que do alto do cerro São Bernardo se tem uma visão panorâmica de seu entorno. Que em La Linda foram construídas diversas igrejas, algumas
pintadas em vibrantes tonalidades rosa e ocre, destacando-se a Nuestra Señora de
la Candelaria de la Viña e sua magnífica e arredondada cúpula ladrilhada de
azul. Que a cidade é movimentada com tráfego intenso de carros cujos motoristas desrespeitam, à semelhança do Brasil, as faixas de pedestres! Que há garçons
simpáticos e outros mal humorados. Que há mais restaurantes servindo menu
turístico do que ranguinho regional. Porém o mais importante: dá pra andar nas
calles sem medo de ser assaltada. A bandidagem, aleluia, ainda não descobriu
Salta!!