domingo, 14 de agosto de 2011

Os gnomos dos bambuzais

Quando acordo, nem bem 6 da manhã, um espetáculo se descortina diante de meus olhos. Os mesmos protagonistas do show de ontem, ao entardecer, inverteram as posições, e quem governa a banda oriental, pincelando agora de vermelho o céu, é o astro-rei. Já a banda ocidental do planeta está ocupada por uma rechonchuda lua tingida de rosa. Lili resmunga porque não pode escovar os dentes já que foi decretado, desde ontem à noite, racionamento de água. A que nos resta deve ser usada como bebida ao longo da caminhada de meio dia que temos pela frente. Novo ponto de água só no final do trekking, em Itamonte. Rodolfo, precavido guia, oferece balinhas de menta pra aliviar o bafo de dois dias sem escovação. Estamos já às 7 horas, descendo o 3 Estados, ao longo de seu flanco leste, numa sucessão de altos degraus rochosos, afogados num oceano de capim-elefa. Toda a descida se faz dentro desta vegetação, tá ligado? Escorrego e levo um belo tombo. Ainda bem que caio de bunda e não de cara no chão. Deixando pra trás o capinzal, uma crista bem íngreme exige uma escalaminhada constituída por dois paredões, que se sucedem um ao outro. Chego a suar, o que é ótimo porque até então estava sentindo frio devido ao frescor matinal e ao vento vigoroso que vem soprando desde a madrugada. Tão forte foram suas rajadas que eu e Lili mal pudemos pregar olho durante a noite! Percorrer estas trilhas, que rasgam bosquetes de bambus e de campinas, cobertas por capins-elefantes, são prova dum ato de fé na manhã lindamente ensolarada. Descida sobre lajedos contínuos e nova subida perrenguenta brigando com novo bambuzal. E quando perco as esperanças de encontrar um terreno “limpo”, eis-me dentro dum bosque lindinho, daqueles de conto de fadas, sem qualquer tipo de vara-mato. Dura pouco, entretanto, a deliciosa pausa de tão enervante vegetação! No restante da subida até o cume do Alto dos Ivos, sou obrigada ao uso dos bastões pra afastar os talos do capinzal. Do alto de seus 2.200 m, se tem uma visão apurada da face leste do Cabeça de Touro e de sua longa crista. Realmente, este pico impressiona desde o primeiro dia quando apenas se faz visível a ponta de seu cume, espremida entre a Pedra da Mina e a Tartaruga. E vai crescendo, crescendo, impondo-se na paisagem até o último dia de pernada! À minha frente, Agulhas e Prateleiras visivelmente mais nítidas que no dia anterior. Deixo então meus olhos descansarem um pouco nessas elevações tão interessantes. Avisto, ainda, dos Ivos, uma pedra solitária que se destaca lá pras bandas de Itamonte. Chama-se Pedra do Picu. Segundo Rodolfo é ótima de se escalar. Toma um dia inteiro, com direito a pernoite em seu cume. Dia seguinte, só alegria: um rapel atrás do outro até se alcançar a segurança do rés do chão. Desacostumada que estava de ver céu sem nuvens, não é que hoje, eis elas, tais quais boás de plumas brancas, adejando graciosas no firmamento? Foi breve a passagem do nuvaredozinho, entretanto. Quando volto a atentar mais uma vez no céu, já exibe ele o imaculado azulão que vem ostentando há 4 dias. E iniciamos então a descida do cume do Alto dos Ivos. Uma pernada que, até se alcançar definitivamente terreno plano, dura 50 minutos. Inicialmente, enfrenta-se um declive pedregoso bem facinho de descer, pra então surgir um costão alajotado super íngreme - eu, medrosa, desço de bunda - que desemboca logo em seguida numa estreita crista plana formada por outro extenso lajedo – aleluia!! – livre de qualquer vegetação pentelhante, avistando-se durante este trajeto a torre de telefonia de Itamonte à esquerda. E outra descida, dessa feita, entrando no sombreado frescor dum bosque onde, no solo, vicejam variegadas bromélias de folhagens verdes e vermelhas. Mais adiante, uma quaresmeira exibe uma solitária flor lilás, findando esta descida num vara-capim. Breve trecho plano num bosque de bambu. Nova descida noutro vara-bambu fodido. E aqui faço um aparte pra denunciar estes entes vegetais do mal que adoram atucanar a vida dos caminhantes. São eles os gnomos dos bambuzais. Uma praga que nenhum facão ou fogo consegue dar cabo! Atacam quem passa nas trilhas, pregando peças de extremo mau gosto, beirando as raias da perversidade. Não respeitam quem quer que seja. Criança ou velho, mulher bonita ou feia, mula com ou sem cabeça, todos levam calço. Todos têm as alças das mochilas presas em seus galhos e esticadas quem nem bodoque por vários metros, enquanto o sujeito, coitado, supõe que tá caminhando livremente. E quem conseguiu ser poupado das bofetadas que os longos caules pespegam nas bochechas sem dó nem piedade, não escapou de lambadas nos braços ou nas pernas. Pra culminar tanta maldade vegetativa, não só as folhas dos bambus quanto os talos secos dos capins-elefantes tornam o terreno muito liso, a ponto de eu levar dois tombos, um deles deixando minha nádega bem dolorida. Inconvenientes de se ser magra. Se eu fosse gorda, meu bumbum acolchoado amorteceria bem mais a queda. Terminados, em definitivo, os declives, novo vara-mato e - nem acredito - um bosque relativamente limpo. E quando me dou conta, estou pisando numa estrada. Feliz da vida, comento, então, com meus botões: “coisa boa, agora é sopinha no mel!” Qual o quê! A tal estrada, coberta de folhas escorregadias, galhos de árvores e pequenos tocos de arbustos cortados recentemente, é um porre de se caminhar. Último dia de pernada é isso aí! Um teste de paciência. Com os nervos a flor da pele, ala putcha, difícil alguém não se irritar. Só santo. E aposto meu dedo mindinho que deve ser do pau oco! Quando tu pensa que terminou tem sempre mais um trecho a vencer. Uma curva que dá noutra curva e assim por diante até tu perder a esperança de que um dia o trekking termine! E foi assim mesmo que aconteceu. Quando achei que a pernada findara naquela bela alameda de araucárias cujo terreno é coberto por polidas pedras, outra estrada se abre diante de meus aturdidos olhos. Dessa feita, de chão batido. Pelo menos isso!! Quando eu já perdera as esperanças, conformada em ser uma eterna andarilha, eis que surge, bem a minha frente, o adorável e brilhante asfalto da BR 354, onde às 13 e 10, dou por encerrada minha ma-ra-vi-lho-sa pernada na Serra Fina. A mesma Kombi branca que nos levara até a Toca do Lobo, parada num recuo da rodovia, nos aguarda! E num restaurante à beira da BR 354, comemoramos o término da travessia, almoçando suculentas chuletas com fritas mais salada, arroz, feijão e farofa com ovo e lingüiça! O brinde não teve nenhuma loira gelada, não! Pois não é que a ala masculina, pasmem, preferiu as avantajadas medidas da morena americana? Pois foi bem assim, acredite se quiser!

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