sábado, 13 de agosto de 2011

O crepuscular 3 Estados

Na bela manhã de sábado, tanto os preparativos do café quanto o desjejum se desenrolam sem pressa alguma. Nosso acampamento, instalado numa clareira, é um oásis em meio ao diabólico capinzal. Desmontadas barracas e acomodada a equipagem dentro das mochilas, às 9 e 25 enveredamos pela estreita trilha dominada em ambos os lado pelo infalível capim-elefante. Afastando, com gana homicida, os compridos talos que teimam em adentrar olhos e nariz, alcançamos em 15 minutos o rio Claro onde aproveitamos pra encher garrafas e cantis, tendo em vista que, daqui pra frente, só quando estivermos no vale do Ruah, localizado no outro lado da Pedra da Mina, obteremos de novo água. Olho pra quarta maior montanha brasileira e penso no respeitável desnível de 1.100 m que tenho de enfrentar até seu píncaro, assentado sobre 2.798 m de altitude. O início do ascenso, pelo flanco oeste, é tranqüilo, palmilhando um lajedo com parca vegetação entre as rochas, aleluia!! Distingo, à medida que vou subindo, mais e mais nitidamente, o - pra mim, bem entendido - encantador pico da Tartaruga. Percebo uma bela crista afastando-se de seu topo e terminando numa escarpa de respeito. Penso, com meus botões, que há ali boas possibilidades de aventura, seja desescalando na mão grande ou no rapel. O que até então era doce logo vira fel! Começam a dar pinta de novo os histéricamente altos capins-elefantes. Graças a deus, o trajeto, brevíssimo, é sucedido por outra extensa e boa laje, de forma que a trilha prossegue livre da vegetação pentelhante até o topo da Pedra onde pisamos às 10 e 25. Os tais 1.100 metros de desnível nem foram assim tão difíceis de galgar. De todos os picos brasileiros, este até agora foi moleza se comparado a outros feitos por mim. Pico Paraná, por exemplo. Dureza total! Rodolfo constata que a caixa de metal prateado, em cujo interior deveria haver o tal livro-cume, se encontra vazia. Nem esquento. Sinceramente? Tô nem aí! Não querendo ofender àqueles que o cultuam, não entendo a razão da existência desse tipo de registro. Como prova de que alcancei o cume xis ou ipsilone, tenho pra mim que minhas lembranças, mais ainda do que as fotos, bastam. Elas são meu livro-cume! Deixando meus olhos circunavegarem pelos arredores, traço uma panorâmica de 270º que engloba, a oeste, os picos da Tartaruga, do Capim Amarelo, do Itaguaré e do Marins. Já a leste, em primeiríssimo plano, o soberbo Cabeça de Touro, ao passo que o Agulhas Negras me obriga a estreitar os olhos já que não passa dum pontinho diminuto no fundo da paisagem. Animadíssimo nosso recreio no cume. Enquanto uns saem pra fotografar, outros (os inveterados fumantes) fazem uma rodinha e tascam fogo em seus palheirões. Fujo como o diabo da cruz daquele antro de viciados e me mando pra bem longe. Vade retro cigarrim nojento....arghhhh!! Mais me vale fotografar flores.....mentira, mentira, mentira.....sinto uma puta saudades tua, fumacinha peçonhenta! Às 11 horas, damos um tchau pro cume da Pedra e resvalando num terreno coberto de cascalho, começamos a baixar a ribanceira que desemboca no vale do Ruah. Se o cara bobear, derrapa e rola que nem tatu-bola, hehe. Contudo a visão dourada (até que pra alguma coisa o capim-elefante serve!) do Ruah compensa o perrengue de tão árdua descida. Marcelo e eu ficamos pra trás. Ele porque carrega uma pesada mochila cargueira, eu porque sou deveras cautelosa quando desço. Divertida companhia, Marcelo revela-se poeta e, entre trancos e barrancos, deixa escapar com certa timidez um “Quero o Apocalipse Para sentir na boca teu gosto Experimenta-me Sou três quartos água Cem por cento alma”. Só não bato palmas porque meus bastões e o medo de escorregar não permitem. Quando se chega à planura do vale, enfrenta-se, inicialmente, um trecho nada firme coberto de turfas. Mais adiante, outro trecho de lama preta, tipo movediça, onde afundo uma de minhas botas quase – ainda bem - até o cano. A instabilidade do terreno deve-se ao olho d’água da nascente do rio Verde que se localiza, justo aqui, no Ruah. Após breve caminhada em meio ao “amigável” capim-elefante, parada pra almoço às margens dum remanso formado no estreito e pedregoso leito do rio Verde. Sentados enquanto comemos deliciosos sandus de carne de porco, escutamos a fascinante embora mórbida explicação de porque Rodolfo nomeou seu mergulho no rio como o “pulo do Getúlio”. Como não poderia deixar de ser, Marcelo, o antropólogo do grupo, pega a palavra e conta o “causo”. “Bem entendido, transmito apenasmente o zum zum ronronado pelas más línguas”, inicia ele com voz solene, “dando conta de que o presidente gaúcho, homem prático, gostava de unir o útil ao agradável quando em visita a Itatiaia. Como amante da caça, a região fornecia os mais variados tipos de animais que, ele bom de mira (tanto que de prima acertou seu orgulhoso coração), abatia com facilidade. Sem esquecer, contudo, seu dever de casa, diligente governante que era, aproveitava pra afogar seus desafetos, ordenando que fossem colocados no interior duma gaiola de ferro, feita exatamente pra esse fim, e submersos na represa situada logo após o abrigo Rebouças”, finaliza ele satisfeito com o silêncio atento que o grupo lhe dispensou durante a narrativa. Ora, se lenda ou não, que tratem disso os historiadores, porque o tempo urge e a caminhada deve ser retomada. Deixando, então, a boa sombra do capãozinho onde almoçamos, às 13 e 40 iniciamos a subida ao longo duma crista, não sem antes atravessar pela enésima vez outro trecho minado de capim-elefante. E durante um bom tempo, subidas e descidas. Ora em meio a bosques de abusados bambuzinhos ora em meio a um oceano de ondulantes capins-elefantes. Tenho de fazer certa justiça a estas duas pragas: servem ao fim e ao cabo pra proteger do forte sol que paira sobre o dia. A pernada sobre a crista do Cupim de Boi é linda demais. À direita, uma larga e profunda garganta, formada pelos lisos paredões do pico do Avião, tem seu término no vale do Paraíba. À frente, ergue-se a maciça presença desta interessantíssima elevação rochosa, o Cabeça de Touro! À esquerda, o pico dos 3 Estados só está no aguardo das nossas pessoinhas. Já no cume do Cupim de Boi, às 15 e 50, visualizo não só as Agulhas como o pico da Serra Negra, o Morro do Couto e até as Prateleiras!! Às 16 e 25, iniciamos a descida do Cupim, socando as botas num pedrario nervoso. Mais bosques de bambuzinhos. E quando penso que esses empata-fodas da pernada terminaram, continuam eles a dar pinta também na crista que antecede à encosta do pico dos 3 Estados. O que compensa são uns trepa-pedras a fudê que escalaminho toda prosa. A fudê pra mim, claro, que tô carregando uma mochilinha de ataque com não mais de 2 kg. Pros guris, que levam nos costados cargueiras com 30 kg, deve ser uma merda! Depois que se sai da crista e se inicia o ataque ao pico dos 3 Estados por seu flanco oeste, sinto até saudades dos bambuzinhos. A minha frente, um trecho íngreme pra caramba, sem dar mole um segundinho sequer, serpenteia pelo infame capinzal que se estende até o cume inclusive. Mas bah, muito mais difícil que a Pedra da Mina este 3 Estados! Tanto é verdade que, quando estamos quase chegando ao cume, comento com Marcelo quão difícil fora a subida. Ele, com sua verve habitual, destilando suor, inobstante a temperatura já bem fresca, solta esta pérola: “Pedra da Mina é coisa de mina!! Como é gozado esse cara, hahaha!! Chegamos ao cume ainda usufruindo vestígios duma boa luminosidade. Tanto que posso curtir a oeste, um cenário avermelhado pairando sobre as mineiras Itanhandu e Itamonte, enquanto, a leste, uma lua, levemente rosada pelos últimos raios do sol poente, paira sobre a carioca Resende. Tudo de bom esta vida de montanhismo. Deitada no colchonete, enquanto alongo meus fatigados músculos, relembro o quão emocionante fora admirar - a ponto de sentir os olhos marejados - o vislumbre da dourada encosta dos 3 Estados um pouco antes de iniciar a conquista de seu cume. E o sorriso de pura alegria que sucedera ao tímido pranto, já pressentindo o anticlímax da vitória. Quer melhor livro-cume que este? Como é o último dia de acampamento, Rodolfo reserva uma surpresa. E que surpresa! Um rodízio de pizzas!! São servidas porções de calabresa, 3 queijos, romeu e julieta e, ulálá, a piéce de resistance: várias e diversas fatias cobertas com espessas camadas de......Nu-te-la!! Duas garrafas de vinho regam nossa calórica ceia. A conversa, como sempre, recheada de bobagens mis, é pontuada por ruidosas risadas. Quando retorno a minha tenda, levemente embriagada, uma lua absolutamente branca me deseja boa-noite! A última na Serra Fina....que peninha!!

Um comentário:

Miriam Chaudon disse...

Bea como é bom você poder fazer essas travessias e viagens. Eu gostaria de ter mais tempo para poder pernear por nossas maravilhosas montanhas brasileiras! Bagagem de vida que levarás sem sentir o peso...apenas prazer.

Abração!