terça-feira, 30 de junho de 2009

Crime passional

Provocada pela aplicacação de severas multas a infrações de trânsito, a tal greve nacional dos transportes, anunciada, desde que cheguei, não surte o efeito retumbante anunciado pelos líderes sindicais. Foram tímidos os paros, em Lima: apenas 50% dos motoristas não puseram seus veículos nas calles. Aqui em Huaraz, também a paralisação foi parcial. Mesmo assim gorou o passeio que eu planejara fazer até Chavin, outro sítio arqueológico. Quando desço até o hall do hotel, sou apresentada a Juan, novio de Arantza. Magro, já entrado nos 40 anos, conhece alguns países da América do Sul, tendo escalado o Aconcágua, Ojos del Salado, entre outros. Tomamos o desjejum juntos na Pastelaria D’Karla. Resolvo provar um iogurte (uma mania nacional esta bebida láctea) e escolho o de guanabana, trigostoso. Peço, ainda, um tostado de queijo serrano. Decido não aceitar o convite do casal pra caminhar até Willkawaian, primeiro porque já o trilhei e, segundo, porque sinto um pouco de dor em meu joelho esquerdo. Era só o que faltava tal peça de meu corpo me incomodar durante o trek que inicia depois de amanhã. E já vem do Brasil quando da pernada ao canion do Tajuva. Deve estar ressentido do esforço feito à época (é a artrose velha pegando neste corpitcho.....coisas da idade, fazer o quê!). Resolvo então caminhar pelas calles, curtindo a balbúrdia da cidade. O que tem de táxi e chollos-táxis é qualquer coisa. As buzinas dos veículos soam seus bibis a todo momento. Aqui, por supuesto, há uma generosa tolerância da lei aos buzinaços. Em certas passagens cobertas, que unem uma rua à outra, homens, sentados a pequenas mesas, batucam, em velhas máquinas de escrever manuais, cartas para os analfabetos. Cobram 3 soles por página. E assim ganham a vida. A cidade é plana, com muitas construções sem reboco, deixando o tijolo à vista, não por charme, mas pra não pagarem imposto sobre as edificações....ahahaha, essa é boa!! Espertos esses peruanos, hein?!! A principal artéria da cidade - a avenida Luzuriaga - apresenta um comércio intenso, predominando lojas de fotografias (há uma ao lado da outra), de guloseimas, sorveterias (outra mania nacional) e farmácias, afora algumas casas de câmbio onde a variação do sol limita-se apenas a 1 centavo entre um e outro estabelecimento. A sempre onipresente Plaza de Armas, com um chafariz ao centro, tem em seu entorno a catedral, ainda em fase de reconstrução, desde o terremoto que destruiu Huaraz, em 1970 (atingiu 7.8 na escala Richter), e matou praticamente todos seus habitantes. Huaraz, aliás, é premiada por catástrofes: em 1941, um fenomenal aluvião que despencou da Quebrada de Churup arrasou também com a cidade. Dou uma banda ao redor do mercado e aproveito pra comprar folhas de coca que pretendo usar durante o trek. Quando vou filmar uma banca de galinhas, o balconista faz um gesto que vai cortar minha garganta, e não era de brincadeira, não! Mesmo assim acho tal gesto hilário e sorrio à socapa. Decido almoçar no Amma y Tequila, situado no meu já conhecido Parque Ginebra. O lugar, aconchegante, é decorado com espigas de milho penduradas nas paredes. Observo encantada que, enquanto no Brasil só há as de grão amarelo, aqui há de várias colorações: pretas (usada para fazer a chicha morada), amarelas, por supuesto, brancas e vermelhas. Os tamanhos do grãos variam dos bem miúdos até os graudões. A garçonete serve, como aperitivo, pacchus, que vem a ser o grão de milho torrado. Usa-se para tanto um tipo de cancha (espiga) que não estoura em pipoca (palomita), conservando o grão intacto e crocante. Deliciosos de comer porque a gente pensa que são duros e, que nada, se dissolvem na boca! A dona do restaurante quando sabe do meu interesse neste cereal, ordena a uma empregada que vá comprá-lo no mercado. Assim trago pro Brasil 1/2 kg de milho! Um cordeiro à la plancha com batatas fritas mais salada mista é minha escolha (não achei lá muito bom o prato, carne meio dura e batatas um tanto quanto gordurosas). E claro, uma taça de vinho. A amável dona do restaurante que trabalha no computador, sentada à mesa ao lado da minha, sugere um tinto argentino porque "los peruanos non son buenos, salvo uno, pero muy caro”. O máximo da hospitalidade, não é verdade? Um afago carinhoso sem toques. Esse Peru é do caralho!! Enquanto espero o almoço (como sempre, almoço tarde, já lá vão há muito as três da tarde), leio, num jornal sensacionalista, comprado na rua, "El Men ( el diario que lucha por tus derechos), o rumorosíssimo caso das cantantes Alicia Delgado, vulgo Princesita del Folclore, e Abencia Meza, conhecida como Pistollita, devendo tal cognome ao hábito de carregar arma de fogo, ou, ainda, la Reina de Las Parranditas (Parranda é uma festa popular). Amantes, as duas viviam entre tapas e beijos, pois Abencia, quando tomava uns tragoléus, cagava Alicia a pau. A Princesita foi assassinada e seu guarda-costas, César Mamanchura, suspeito de tê-la apunhalado, acusa, entretanto, Abencia de ser a mandante. Tanta a baixaria das envolvidas que a tal Abencia tem uma amiga, também, cantante, cujo sugestivo apelido é Mecânica del Folclore. Seu physique du rôle faz jus ao espírito de caminhoneira que encarna: cabelos curtos, jaqueta masculina de couro preto e enormes óculos escuros. Coisas do reino das sapatas peruanas. Abencia, baixa e de carnes socadas, quando entrevistada num programa de TV, apresentou-se o tempo todo deitada e rodeada de parentes e amigos, temerosos de que tente se suicidar pois "Alicia me está llamando", assegura La Pistollita com cara de canastrona infeliz. Quedas de pressão e desmaios fizeram com que Abencia fosse internada numa clínica no dia do enterro de Alicia (foi ontem). De todas as pessoas com quem comento a estória na cidade, nenhuma duvida de que Abencia seja a mandante, mas como explica uma balconista, placidamente, “faltan pruebas”. Terminado o almoço, resolvo fazer um city tour e para tanto pego um chollo-táxi motorizado (há os puxados por bicicleta) e dou então uma banda pela cidade. Lá pelas tantas, o motora pára em frente a uma construção e me explica que ali há uma arena de toros. E eu pensando que só na Espanha houvesse esse esporte. Meu city tour foi tudo de bom. O motora do barulhento e lento veículo pára a meu pedido, permitindo que fotografe e filme recantos de Huaraz que não palmilharia se houvesse contratado um tour convencional. E minha impressão inicial de Huaraz confirma-se: embora seja uma cidade pobre e sem graça, eu gosto dela mesmo assim,ou, talvez, por causa disso!

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