Bueno,
lá vou eu junto com Fernando no carro de Raul, amigo do guia, rumo à Bolívia. Após
rodarmos 60 km deixamos pra trás a província de Salta, penetrando na província
de Jujuy. A partir de Volcán, a paisagem começa a mudar porque já se pode
perceber melhor a quebrada de Humahuaca, um vale profundo e estreito por onde
corre o rio Grande, nesta época do ano apenas um fio de água. Paramos na estrada pra curtir o
belíssimo cerro de Los 7 Colores situado em frente a Purmamarca, vilarejo
fincado a 2.130 metros. Como não podia deixar de ser, entramos na pitoresca e
turística vila cujas casas, algumas de arenito rosado, dão um toque caliente às
ruelas. Aproveito, enquanto os demais amigos de Fernando não chegam, pra dar um
rolê pelo pueblito. Lojas, cafeterias e restaurantes, além de dezenas de bancas,
onde as índias expõem seus artesanatos, circundam a praça. No canto leste,
cercada por um muro branco, a igrejinha de Santa Rosa de Lima, igualmente
caiada de branco, registra em sua frontaria a data da construção: 1648. Subo ao
mirador El Porito donde se avistam de perto os multicoloridos cerros e a vila
abaixo. Encontro então no restaurante onde iremos almoçar os homens que irão também
subir o Licancabur. Pertencentes à conservadora sociedade saltenha,
economicamente muito bem de vida, todos são sessentões salvo um, de 40 anos, chamado
Manoel, que se revela o engraçadinho do grupo. Chega falando em voz alta,
tratando os amigos "carinhosamente" de pelotudos e disparando no me rompan los huevos quando contrariado. Consciente de que falar mal das mulheres arrancará riso fácil, em especial se for da sua, é o que faz assim que senta à mesa, garantindo dessa forma a atenção geral. Autodenomina-se un
pentejo gracioso, quando na verdade não passa dum tipo vulgar. A partir de Purmamarca, seguimos pela ziguezagueante
e empinada Cuesta de Lipán onde do alto de seu mirador, a 4.170 metros, posso
admirar a linda e sinuosa RN 52 que liga a quebrada de Humahuaca a puna de Jujuy. A caminho de Alfarcito, a paisagem econômica, composta por
gramíneas espinhentas, comíveis apenas por lhamas e vicunhas, é abruptamente
interrompida pela brancura da planície de Salinas Grandes, um deserto de sal
explorado por particulares. Situada no altiplano, a 3.600 metros, Alfarcito de la Puna ou San Francisco de
Alfarcito, embora não conte com mais que 150 almas espalhadas em casas
de pedra, palha e barro, tem - eba! - wifi coletivo, pousada e restaurante. Venta
pra caramba o que não me impede de subir ao mirador de La Cruz donde avisto a laguna Guayatayoc em cujas margens as aves
saciam a sede, em especial, após as chuvas intensas que caem no verão,
amenizando assim o teor de salinidade de suas águas salobras. Domingo, rumo a Paso
de Jama, entramos brevemente em Susques, pueblo maior que Alfarcito, em cuja
arborizada avenida destaca-se, além do busto dum general, a simpática igrejinha com
telhado de palha. Mulheres aproximam-se do templo para assistir à missa
matutina. Os demais homens do grupo, em número de 3, vão na camionete pertencente a Manoel. Decorridos 106 km, rodando ainda pela
RN 52, alcançamos os 4.200 metros do Paso de Jama, fronteira da Argentina com
Chile. Muito rápido os trâmites burocráticos de saída da Argentina e de entrada
no Chile porque tanto aduana quanto imigração são compartilhadas, localizando-se
no mesmo prédio, em guichês contíguos. Andamos mais 120 km até Hito de Cajon, outro
passo da cordilheira dos Andes, que divide dessa feita Chile da Bolívia. A
obsoleta Bolívia não adota o compartilhamento de
fronteiras, motivo pelo qual, após carimbarmos nossa saída do Chile, temos de
rodar alguns kms até o posto boliviano, finalizando – ufa! - nossa entrada na
Bolívia. Na aduana, em frente ao refúgio Laguna Verde, se paga 25 dólares a
título de entrada na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa onde se
situam vários vulcões, destacando-se Sairecabur e Putana a oeste, já do
Licancabur, que iremos subir amanhã, só se vê seu cume escondido pelo flanco
norte do Juriques. De alguns vulcões inativos, como Suzana, é possível a
extração de enxofre. O refúgio Laguna Verde, situado a não desprezíveis 4.450
metros de altitude, em realidade, se queda diante da laguna Blanca, separada por
estreita faixa de terra da laguna Verde, mais ao sul. Às suas margens, flamingos
e outras aves aquáticas dão o ar de sua graça. No meio da tarde, o vento começa
a se fortificar e a poeira levantada tal qual uma echarpe bege esvoaça pelo ar.
O espetacular pôr do sol, colorindo a paisagem dum rosa metálico, me consola um pouco do ataque que sofrera de Manoel durante o almoço.
Abruptamente, o homem virara-se pra mim e declarara solene Beatriz eres
divina (pausa sádica) cuando quedas de boca cerrada. Impactada, a pateta não enfrentou a ofensa, deixando prevalecer, infelizmente, a baixa autoestima inculcada em nós, mulheres pelo depreciativo e velhaco discurso masculino de menos valia desde tempos imemoriais. Confesso que ainda sinto raiva de mim – olha só que loucura! - por ter deixado passar em brancas nuvens a grosseria gratuita daquele boçal que queria se fazer de humorista, a minha custa, pros amigos. À mulher, na perspectiva dos macho...cados, como denomino este tipo de homem, só é permitido abrir a boca pra dizer como o pau deles é gostoso, como são geniais e maravilhosos. Então sim, ella es hermosa hablando. Consigo agora
entender às ganhas porque muita mulher apanha e nem consegue denunciar seus
agressores. O baixo autoquerer-se, adquirido em séculos de submissão, reforça
os laços de aceitação da violência masculina. Pensam que alguém na mesa reagiu? Nem percebi se sorriram ou riram tão atordoada me senti. Todos permaneceram
calados, inclusive Fernando. Mas a implicância não parou porque pouco depois, em
comentários sobre futebol, o homem observa que o Brasil está liquidado neste
esporte. Ele realmente estava a fim de me provocar duma forma sórdida tanto é
que o golpe final foi desferido quando ele grita “Bolsonaro, Bolsonaro”, sabedor
de minha aversão ao então candidato a presidente do Brasil. Finalmente, esboço uma reação e levantando da mesa, num tom indignado, brado basta,
tudo tem limite!, conseguindo enfim calá-lo. Porra, viajara até o país deles pra participar do que imaginara
ser uma agradável aventura e estava sendo gratuitamente maltratada, atacada de forma covarde. Foram todos omissos e, portanto, cúmplices desse ataque
misógino e, porque não, xenófobo que sofri. Prevalece, mais uma vez, o tal "espírito de corpo",
inventado pelos homens de modo a arranjarem álibis fajutos pros seus desmandos. A
viagem perdera a graça. Tanto que, dia seguinte, enquanto estou subindo a
face norte do Lica, lá pelos 5.100 metros resolvo descer. Não foi por cansaço
físico, já que me mantinha sempre à frente de todos, atrás apenas do guia. Acontece
que fiquei enojada, farta até os gorgomilhos de conviver com essa gente. Enfatizo, contudo, que o pior de todos foi o Senhor Fernando Santamaria. O
papel desempenhado por ele, ou melhor, que não desempenhou como guia, foi desprezível. Explico.
Quando decido não mais continuar a subir o vulcão, ele todo pimpão segue com os
amigos ao invés de descer comigo, sua cliente! Abraça-me todo emocionado e elogia
minha generosidade de permitir que continue a caminhada rumo ao cume (espertamente,
ele se antecipou a qualquer reivindicação que porventura eu pudesse fazer,
tornando meu silêncio atônito como sinal de consentimento). Mas sua atitude
descortês não tem limites. À noite, quando estamos em San Pedro de Atacama me
deixa ir jantar sozinha porque prefere acompanhar Seus Amigos! E no dia
seguinte, durante o café da manhã, se eu não o tivesse chamado, ele teria se
sentado a outra mesa com Seus Amigos!! E eu pagando por isso!! 300 dólares pra
que o chupaculos desfrute do convívio dos a-mi-gos, esquecendo-se de que está
a trabalhar!! Tô me sentindo a otária. A cara de pau desse senhor é
inigualável. Bueno, nada como uma boa noite de sono pra restaurar a autoestima
abalada por tanta rejeição. Assim, na terça, no retorno a Salta, até porque seria
uma imbecilidade de minha parte deixar que essa gente me impedisse de
desfrutar a beleza do cenário durante o trajeto de San Pedro a Paso de Sico, mergulho encantada o olhar na paisagem. São dezenas e dezenas de vulcões, alguns com os cumes nevados, sobressaindo no árido altiplano
chileno. Numa curva de estrada, eis que surge o lindo salar de Talar tendo diante de si uma fulgurante laguna de
coloração turquesa. Pouco antes de Sico, Las Barrancas, impressionantes paredões
rochosos, semelhantes aos muros dum castelo medieval. A partir da Argentina, a
paisagem continua exibindo a aridez da puna entremeada aqui e acolá por salares, destacando-se
o de Rincon. Em Abra Chorillos, situada a 4.475 metros, começa-se a descer uma
fantástica estrada de chão batido com curvas deliciosamente fechadas até a empoeirada San
Antonio de los Cobres onde paramos pra almoçar no restaurante Huayra Huasi em cujo
cardápio o destaque são empanadas fritas. Chego enfim a Salta e, dia seguinte,
quarta-feira, pico a mula de volta pro Brasil. Durante a viagem chego à
conclusão que com esse grupo de argentinos pra lá de pelotudos pari uma
montanha mais alta que o Licancabur!
2 comentários:
Amo os seus relatos. Parabéns!!
Lamento pot este brutamontes que não honra a classe dos homens. Você é uma pessoa muito querida.
Bia tu escreves muito bem! Tua narrativa é deliciosa, nos tornando cúmplices da viajante! Belíssima viagem esta que fizeste pelo norte argentino. Só me pergunto por quanto tempo comportamentos embebidos de violência como o do guia e seus iguais ainda continuará naturalizado. É uma nota triste que, todavia, não abala o colorido vivaz dessa jornada esplêndida! Caminante no hay camino, el camino se hace al andar...
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