Não
há voo direto do Brasil a Guiné Bissau. Necessário conexões em Marrocos,
Cabo Verde ou Lisboa. Escolho a última não demorando mais que 4 horas no aeroporto português.
No voo Lisboa-Bissau, sentada ao lado dum homem cuja cor retinta de tão preta,
como dizia minha vó, revela sua inequívoca origem africana, trato de puxar assunto. Conversa-vai, conversa-vem, quando pergunto se a mãe dos filhos mora em Bissau, o simpático guineense declara não sem uma ponta de malícia que está desbloqueado (?!) hahahaha. Inquieta,
com câimbras nas pernas, trato de passear no avião, terminando a caminhada na fila do
toalete, bom lugar pra se bater um papo. A mulher, que lá se encontra, comenta
que vem de 2 costelas, lançando mão dessa imagem pra explicar sua ascendência
guineense-cabo verdiana. Falante, esclarece com autoridade que “os homens são uns malandretes,
uns safados.” Um rapaz, também aguardando sua vez de ir ao toalete, confirma,
sorridente, a observação. Mas o que fazes, senhorinha, metida num avião a
caminho da quase desconhecida Guiné Bissau, hein? Indo ao encontro de Raul que vive e trabalha em
Bissau, capital do país! O que não se faz por um filho, não é mesmo? Nunca
em meus planos ou sonhos cogitei visitar a África. O foco sempre foram as altas montanhas,
motivo por que considerava até então os Andes na América do Sul e o Himalaia na
Ásia suficientes pra me proporcionar toda a dose de aventura desejada. Só terminada
a viagem, já no Brasil, foi que senti às ganhas a importância de ter conhecido uma
parte do continente africano....valeu, Raul Luar!! No pequeno aeroporto de
Bissau, Raul me espera juntamente com Frederico e Carlos, vice-cônsul
brasileiro. Tenho apenas vislumbres de ruas ora escuras ora iluminadas enquanto
sou conduzida até o apartamento onde ficarei hospedada, gentilmente, cedido por
outro amigo de Raul, o Jorge, português que trabalha como optmetrista numa
ótica 6 meses por ano. Nesta noite, conversamos deitados lado a lado na cama
de casal, eu e Raul até quase amanhecer: o filho, animadíssimo, cheio de assuntos,
tem muito a me contar. Não consigo ainda atinar porque Raul preferiu vir pra Guiné
Bissau, onde 2/3 da população vive abaixo da linha da pobreza. Pouco maior que
Alagoas, sua população não supera 1 milhão e oitocentas mil pessoas. Situado na costa
ocidental da África, banhado pelo oceano Atlântico, seu relevo, predominantemente
plano, revela savanas no interior, ao passo que o litoral, formado por planícies
pantanosas, é constituído por cordões de ilhas denominadas Bijagós. O clima
tropical exibe duas estações: a chuvosa e a seca. Estamos agora no período da
seca, com dezembro e janeiro sendo os meses mais frescos. Mesmo assim, as
temperaturas se mantêm elevadas devido aos ventos quentes vindos do deserto do
Sahara que enchem a atmosfera de poeira. Meu primeiro dia em Bissau é
impactante!! Grave problema detecto de cara na cidade: sem lixeiras e aterro
sanitário, o lixo é jogado ao léu nas ruas e ali mesmo queimado! Tal desleixo, gravíssimo,
mais do que o feio impacto estético causado, envolve riscos à saúde pública. Apesar
disso abstraio (fazer o quê, né?) e deixo a cidade e seu ritmo alegre me
envolver enquanto caminho ao longo das ruas de chão batido, poucas com calçamento. Embora localizada no estuário do rio Geba, impraticável banhar-se em suas águas pois é zona de mangue...uma pena!
Não canso de admirar a coloração de pele dos guineenses: tal qual pérola negra
(licença, viu, Luiz Melodia?), brilha, sedosa, sem mescla alguma. Movimentada, a
zona central da cidade, chamada praça, é ocupada por dezenas de vendedoras de
comida envoltas em seus trajes coloridos que, sentadas às calçadas, apregoam em
voz alta seus produtos: mariscos, polvos, lulas, camarões, peixes, carnes,
galinhas vivas, fatias de côco, bananas, laranjas já descascadas, mamões, abacaxis
em rodelas, ovos cozidos, castanhas de caju, amendoim. Homens, escarrapachados
em cadeiras, trocam euro por franco CFA a um preço um pouco melhor do que nos
estabelecimentos bancários. Compro uma banana e uma fatia de abacaxi que vem a
ser meu café da manhã. Mulheres passam por mim carregando comida em bacias de
plástico aninhadas sobre as cabeças. Como vim a descobrir mais tarde, foram
elas que utilizando este expediente astucioso conseguiram repassar armamento e
munição aos soldados guineenses que lutaram na guerra contra os portugueses no
século passado. Guiné Bissau, como entidade soberana, é um bebê ainda: apenas, em
1973, logrou declarar sua independência de Portugal! A população pode ser
dividida nos seguintes grupos étnicos: fulas (por serem nômades se espalharam
por toda África) e os povos de língua mandinga, que compõem a maior parte da
população; há ainda os mandjacos e balantas (2 primeiras etnias guineenses a
estudarem no exterior), mancanhas, saracules, pepel e bijagós. As crenças
tradicionais africanas convivem bem com o islamismo professado por metade da
população. A economia do país depende principalmente da piscicultura e da
agricultura, destacando-se as culturas da castanha de caju e amendoim, principais
produtos de exportação. Almoço nos dias em que permaneço em Bissau no
restaurante Bayana, lugar aprazível, com caramanchão feito de vegetação artificial
e mesas de pneus. O menu com pratos típicos é bem gostoso, destacando-se
mancara com citi (galinha com creme de amendoim). Provo os sucos de veludo e
cabaceira e os acho meio sem graças. Bueno, o plano é passar o natal em
Bubaque, uma das 20 ilhas habitadas das 88 pertencentes a Bijagós, não
ultrapassando a população insular 33 mil pessoas. Devido à sua biodiversidade,
desde 1996, Bijagós foi declarada pela UNESCO Reserva Ecológica da Biosfera. Há
2 parques nacionais espalhados pelo arquipélago: o de Orango e o Marinho de
João Vieira e Poilão. Pousadas apenas em Bubaque, Rubane, João Vieira, Orango e
Kere. Embora o estilo musical predominante em Guiné Bissau seja o gumbé, em Bijagós
reina o kundere. Na ilha de Orango, o sistema matriarcal faz com que as mulheres
escolham seus homens. Pra tanto, preparam um prato à base de peixe, deixando-o
à porta das tabancas onde eles vivem. Se for comido, significa que o cara aceitou.
Então, dia 21, nos mandamos pra Bubaque num barco que, além de comportar nos 2
deques pessoas e suas bagagens, carrega cachorros, galinhas, porcos e
carneiros!! Até todos se acomodarem a bagunça é grande mas quando o apito soa
indicando que o barco está prestes a zarpar todos sentam-se em seus
lugares. Um pequeno bar, no deque inferior, vende batatas fritas de saquinho, a
apreciadíssima sande (sanduíche) recheada com fígado ensopado, refris e cerveja.
Há passageiros, contudo, que levam viandas, geralmente com peixe e arroz, pra
comer durante a travessia. Pouquíssimos turistas, além de mim e Raul. Normalmente, os 73 km de Bissau a Bubaque é
feito em 4 horas, entretanto devido à avaria em um dos motores, a viagem
arrastou-se durante 6 horas!! Ao longo da travessia, na vastidão do Atlântico,
enxergo 2 ilhas, a grandota das Galinhas e outra bem pequena em que pontões rochosos
afloram à beira d’água. Ao entardecer, dois espetáculos: a oeste, o pôr do sol torna o céu
deliciosamente incandescente, ao passo que, a leste, a lua cheia brilha no céu
sem qualquer respingo de nuvem. Chegamos à noite, no porto há muita gente
esperando parentes e amigos. Apesar de todo mundo ansioso pra desembarcar, por
o pé em terra firme, há bem pouco empurra-empurra. Vamos direto à pousada Cruz
Pontes onde ficamos hospedados durante os 5 dias de nossa permanência em Bubaque.
Simples, os quartos têm banheiro e ventiladores. Os com ar condicionado custam
mais caro. O café da manhã é básico: pão, margarina, geléia, nescafé, chá,
leite em pó e água quente numa térmica. O dono, Seu Paulino, embora de poucas
falas, sempre sorri quando o cumprimento. Algumas ruas em Bubaque são
ladrilhadas com conchinhas de modo a evitar a erosão. No mercado, diante do
porto, mulheres vendem coquinhos de dendê, mariscos, mexilhões e outros frutos
do mar. Agitação intensa enquanto cargas são transferidas do cais ao interior das
pirogas. Aos desavisados parece que as pessoas vão brigar, contudo é o jeito de
ser dos guineenses falando alto, de forma enérgica, cuidando pra que seus
pertences sejam acomodados em segurança. Quando partem, a calmaria se instala
no porto restando apenas o bailado leve das gaivotas voando sobre a água
esverdeada do canal que separa Bubaque de Rubane. O ar refresca um pouco à
noite, já durante o dia é deliciosamente cálido. Dia seguinte, vamos eu, Raul e
Antonia, uma brasileira, naturalizada alemã, que conhecemos durante a viagem de
barco, pedalando até Bruce, linda praia, localizada na ponta sul da ilha. São
15 km de estrada plana, chão batido, cercada por densa vegetação. Dentre as
variedades de árvores, destaca-se a palmeira do dendê, donde além do óleo é
extraído vinho. Esta bebida, conhecida como vinho de palma, pode tanto ser
consumida fresca quanto fermentada, adquirindo assim certo teor alcoólico. Ao longo do
caminho, em ambos os lados da estrada, despontam aldeias, chamadas tabancas, com suas moradias de adobe e
teto de palha. Em Bubaque há 7 tabancas, cada uma com 2 mil pessoas, sendo, portanto, a ilha mais
populosa do arquipélago. Crianças saem correndo das casas gritando “branco,
branco” quando nos vêem passar. São encantadoras e não se negam em ser
fotografadas ao contrário de suas mães que fazem gestos negativos quando
percebem que estou apontando a câmera em suas direções. Homens em bicicletas
carregam nos guidões galinhas vivas e varas com peixes. Ao chegar a Bruce, o
mar verde, calmo, levemente morno, convida a prolongados mergulhos em suas
águas onde balouçam barcos coloridos ancorados a 100 metros da praia. Almoçamos
no restaurante de Mana Fatu 1 garoupa inteira com batatas fritas e salada, regada
a refeição a Cacho Fresco, um branco português bem geladinho. No terreiro da
propriedade, desenvolvem-se os preparativos pra inauguração da pousada de Manu
Fatu. Ao ar livre, sobre trempes, onde abaixo a lenha, já em brasas, arde,
enormes tachos contendo arroz com carne, dobradinha e chep jhed (molho feito
com pedaços de cebola, pimenta, cenoura e pimentão) cozinham. Vez por outra mulheres
com compridas varas de madeira remexem o interior dos panelões donde saem fumarolas
e bons odores. Como temos horário pra entregar as bicis alugadas, não podemos ficar
pra festa que terá apresentação de música e dança kundere!! Mas o que é do homem o bicho não come
hehehe!!! Na véspera de natal, eu, Raul, Antonia mais 2 dinamarqueses vamos de lancha
a Rubane onde, no resort Ponta Anchaca, almoçamos e assistimos ao cair da noite
sabem ao quê? Show de kundere!!! Durante a dança, os dançarinos carregam
chocalhos feitos com tampinha de refrigerantes que ecoam agradável som metálico
em contraponto à batida seca dos tambores executados pelos percussionistas. Costurados
às vestimentas das dançarinas objetos de metal e vidro mais pulseiras de madeira
atadas aos tornozelos complementam a percussão. Emocionante reconhecer a origem
do samba no batuque dos tambores e nos passos de dança!! Entretanto, a
complexidade e variedade dos movimentos corporais dos dançarinos de Kundere, em
especial dos pés, superam em muito os de nossos sambistas, exigindo extraordinário
vigor e preparo físico. Claro está que retornei a Bubaque em estado de graça!! Dia
de natal, Melchior, dono da Saldomar, rústica e charmosa pousada, prepara lauto almoço para hóspedes e
não-hóspedes. O catalão adora contar a bruta e complicada relação com o pai, terminando
a narrativa com a dramática revelação de que seu viejo, um homem duro que
nunca chorara, desmanchou-se em lágrimas, pouco antes de morrer, pedindo
perdão por ter estigmatizado a homossexualidade do filho. Finaliza dizendo em alto e bom som “tengo
cojones” enquanto bate no peito, pra provar ao interlocutor que embora
homossexual é macho pra caramba. Escutei 3 vezes essa estória sem que houvesse
qualquer floreio a mais ou a menos, até os socos no peito foram 3! Manhã seguinte, retornamos a Bissau, alugando uma lancha que vence em 1 hora e 20 minutos o que demoráramos 6 horas na viagem de vinda!! Temos pressa, amanhã bem cedinho estamos indo pra Dakar passar o ano novo! Albarabake, Bissau!!
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