Pretendo com este blog descrever viagens que fiz e farei por este tão lindo planeta, resgatando da memória as impressões armazenadas, algumas já esmaecidas pelo tempo, outras prudentemente registradas pelo olho mágico das lembranças fotográficas.
sábado, 28 de setembro de 2013
Acupunturando a Mantiqueira
Acordo na madruga e o que vejo?
A lua minguante rodeada de zilhões de estrelas. Ver essa cena compensa a saída
do quentinho do saco de dormir pra enfrentar o ar geladinho da noite na obriga de
fazer xixi. Nem é tanto frio, assim! Aqui no sudeste não faz frio igual ao do sul. Quando acordo às 5 e 30, escuto os guris conversando e preparando o
café. O dia amanhece lindo. No vale, em frente à serra do Chapadão, o nevoeiro
paira baixinho. Durante o café Rodolfo conta uma estorinha acontecida há um par
de anos atrás envolvendo 2 jovens daimistas. Estava ele com um grupo acampado
aqui, neste mesmo local, quando foram surpreendidos pela chegada do casal. “Bom
dia pessoas, sou Sideral”, apresenta-se ele. “E eu Celeste”, completa a moça em
tom suave. “Vocês poderiam, por favor, não acender fogueiras? O risco de
incêndio é bem maior”, frisa o rapaz em tom firme mas gentil. E Rodolfo,
entusiasmado, continua a discorrer sobre o Daimismo. Seu conhecimento advém dos
anos em que sua mãe seguiu essa doutrina. Fico então inteirada que na região há
3 comunidades: a de Pedra Negra, situada atrás da Serra do Chapadão, e
as de Matutu e do Gamarra, sitiadas naqueles vales. Os daimistas, prossegue
Rodolfo, são mal interpretados. As pessoas por desconhecimento de seus princípios
doutrinários, cuja origem, a bem da verdade, é cristã, só se fixam no lance do
chá e suas discutíveis propriedades alucinógenas. E, mais, enfatiza ele: os
daimistas são autossustentáveis já que vivem do que plantam e fabricam,
organizando-se em cooperativas. Zelosos em relação à natureza, reivindicam o direito
de, em sendo filhos de proprietários de pequenos latifúndios, exercerem o
ofício de guarda-parques das unidades de conservação existentes na Mantiqueira.
Embora de fala-mansa, exigem observância das boas regras de preservação da
natureza. Todo esse conversê é pra explicar o porquê de a trilha ser chamada do
Segredo. A um, pelo mistério que cerca os daimistas, fruto da ignorância sobre os
preceitos do amor e da fraternidade pregados pelo negro maranhense, Mestre
Irineu, idealizador da doutrina. A dois, pela escassa frequência nos senderos que
unem a serra do Papagaio a do Charco. Vem daí que os guias Rodolfo, Zangão
Dourado da Mantiqueira, e Sir Willian, Príncipe das Terras Altas da
Mantiqueira, seguindo a cartilha do arcadismo (tão em voga entre os poetas
inconfidentes do século XVIII), tascaram o instigante apelido de trilha Do
Segredo em mais um dentre os infindáveis caminhos que a Mantiqueira nos reserva.
Mas bah tche, fico viajando na do Sto Daime e perco o fio da estória.... onde eu
tava mesmo? Ah, lembrei! Saindo do Cerro Frio, entramos numa mata atlântica e
20 minutos depois desembocamos num descampado, conhecido como Campo das
Macieiras. Rodolfo, visivelmente emocionado, pára e aponta uma agulha de
granito fincada no extremo norte da clareira. “Este lugar foi onde o Professor
Hemoto escolheu pra fazer a acupuntura na terra. Pra purificar mais ainda as
águas que correm embaixo do solo!” Infensa, geralmente, às emoções pueris, não
resisto a essa autêntica manifestação telúrica e deixo minha pele se arrepiar.
Agradeço, em voz alta, ao maluco beleza do professor Hemoto pela sua genial
realização! Depois dessa agulhada espiritual, percorro com mais alegria ainda o
longo trecho da estradinha de chão batido que vem a ser a Transdaime. Explico,
a Transdaime foi uma tentativa dos daimitas de unir a Serra do Papagaio à do
Charco. Ainda bem que o Ibama impediu a continuidade da obra! Nessa aí os
daimistas mandaram mal pra caramba! Vestígios da Transdaime evidenciam-se no estreito
trilho que sulca o solo arenoso. Ao longe, uma longa subida me deixa meio
assim-assim. Zé Natureza, coitado, chega a parar e se apoiar em seu bastão de
bambu, reunindo forças pra empreitada. Como a toda subida corresponde uma
descida, eis-me agora - coisa boa - caminhando faceira ladeira abaixo. Dura pouco minha alegria
porque outra subida já se sucede. Mesmo carregando aquele fardão nos costados,
os guias já vão longe. Que força esses guris têm, benza deus! Zé, o lanterninha, vem na boa, naquele seu ritmo
pachorrento de caminhante “devagar se vai ao longe”. Vegetação rasteira na crista da serra do Charco
donde se vêem os morros da Campina, Sol, Nogueira, Mitra e Bispo, à esquerda.
Já à direita, a face oeste do Pico do Papagaio e o topo plano e espaçoso do
Cerro Frio, situado aos pés do Pico do Gamarra. Rodolfo chama minha atenção pra
cachoeira do Fundão, encravada nos confins do vale do Matutu. Mais adiante,
avisto mais nitidamente a Serra da Careta e seu ponto mais alto, Pico do Chapéu.
Ao sair da crista, entramos numa mata atlântica, parando à beira dum ribeirão cujas
águas formam uma pequena cascata. Fazemos uma boquinha, bebendo suco de limão e
mordiscando amêndoas, castanhas e pistaches. O que tem de macela nessas
paragens do Charco, salta à vista. E macela branca além da amarela!! Nem sabia
que havia dessa cor! Nova subida pela encosta dum morrão onde as candeias
fornecem um pouco de sombra. Após curta caminhada noutra crista, uma descida
punk que dá noutro riacho. Mais uma subidinha e na descida já se avista o rio Santo
Agostinho e suas cascatas e corredeiras. Cruzamos o rio cujas águas, um
tantinho revoltas, inspiram certo cuidado. Percorrendo encostas de morros, ainda é visível o rio Santo Agostinho. Mas bah, tche, por essa eu não esperava, olha só: bosques
de araucárias dando pinta na paisagem! Mas vem cá, essa árvore não dá só no
sul? Tsk tsk tsk...vou morrer e não vou ver tudo! Basta de divagar, volta a
narrar, mulher! Bueno, reza a lenda que os índios, no inverno, vinham até essas
paragens atrás de caça e pinhão. Por deus, sinto uma vibe fantasmagórica pairando
forte nessas paragens mantiqueirenses: índios, bandeirantes, capitães de mato,
negros fujões e jesuítas. E, agora, nós, os loucos por aventura, querendo
curtir um barato com a natureza....pois é! Nossos estômagos – afinal já são 14
horas - reclamam de fome. Se faz então uma parada pro almoço. Terminada a refeição (a mesma de ontem),
caminha-se por mais encostas de morros. Numa curva da trilha, o rio Santo
Agostinho se faz presente novamente exibindo em seu leito uma borbulhante corredeira.
Céu azul de brigadeiro. Às margens doutro rio, onde há anos atrás houve uma zona
de garimpo, paramos. Encho-me de coragem e encaro suas águas frias. Bem escandalosa,
solto gritinhos ao mergulhar. Saio, entretanto, revigorada, pronta pra trilhar
mais trocentos kms, hehe. Retomamos a caminhada e decorrida 1 hora, estamos diante
doutro rio. Atravessamos até a margem oposta, caminhando por seu leito
alajotado onde as águas escorrem calmas e rasas. Este será o lugar onde pernoitaremos.
O terreno, plano e úmido, favorece o crescimento de touceiras de estrelas
brancas, erva cuja floração ocorre justamente nesta época do ano. Rodolfo
prepara um café e depois eu faço caipirinha. Na janta, pizzas!! Salgadas e
doces, sendo que estas são Romeu e Julieta e de Nutela. De bebida, vinho tinto.
Uma festa esta noite, pirilampos na terra, estrelas no céu e o barulhinho da correnteza
do rio vibrando no ar!
2 comentários:
Ficou bem a mudança do plano fundo do seu blog! Quantas lindas andanças!
Show demais a narrativa! Estive lá este fim de semana e quando li foi como estar lá de novo. Parabéns!
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