segunda-feira, 7 de março de 2011

Paisagem de fim de mundo

Durante a madrugada, a insônia de Valéria e de Luca foi premiada com estrelas cadentes no céu estrelado, segundo contam durante o café da manhã. Por falar em Luca, o veneziano, radicado no Rio de Janeiro é um capítulo à parte. Carrega na sua mochila pessoal um guarda-chuva, lembrando uma versão masculina de Mary Poppins. Acompanha-o seu sorridente filho, Marquito, piá de 11 anos, super bom de perna. O italiano trouxe na bagagem um eito de guloseimas que vez por outra divide conosco. Assim, salamitos, queijos, biscoitos e até um providencial conhaquito surgem do fundo da sacola pra delírio do grupo, submetido a uma dieta de massa, sopão e goiabada. No café da manhã, descubro que a cozinheira se chama Maria. Índia, pertence à tribo Pemon. De arrasto traz a família: filhos, marido, noras e genros. Enfim, uma pequena tribo nos acompanha. Maria prepara, além de mingau de aveia, arepa, prato típico indígena, obrigatório nas mesas venezuelanas, colombianas e panamenhas. Trata-se duma espécie de pão de milho, sem fermento na massa, por isso, achatado. Pode-se prepará-lo frito, assado, ou fervido. Os recheios mais comuns são carne, galinha ou queijo. E quando não se tem nada pra recheá-lo, se come purinho. Mesmo sem recheio, é bem bom, pode crer! Às 8 e 20, deixamos o acampamento-base sob um céu toldado de cinza. E debaixo duma chuvinha miúda, começamos a pernada. Embora o desnível ao topo do Roraima perfaça apenas 850 m, a distância quintuplica e vira 4,5 km. Inicialmente, faremos uma caminhada até a base da big wall, quando então quebraremos à esquerda e passaremos a contorná-la até atingir o topo do grande platô. Já de cara, tem de se encarar 200 m de degraus, escavados na rocha calcária, resultado da erosão das águas que escorrem continuamente montanha abaixo. O solo de coloração clara exibe aqui e ali tons avermelhados, denunciando a existência de quantidade significativa de ferro nesse tipo de rocha. Superada a escadaria, a ingremidade do aclive continua cada vez mais punk com uma inclinação que deve beirar os 45º. Vários obstáculos obstruem o caminho ao longo da trilha: robustas e avantajadas pedras exigem uma certa escalaminhadazinha básica, além de troncos e raízes de árvores caídos que obrigam a uma contínua ginástica das pernas. Após alcançar a parede, o que era super mega íngreme torna-se apenas íngreme e assim continua até o topo. A chuva não dá arrego: fininha e contínua deixa minhas roupas encharcadas já na metade do caminho. O trajeto é quase o tempo todo dentro duma mata ombrofila cuja vegetação apresenta arbustos de médio e pequeno porte, destacando-se a schifronela rugosos, palmeiras como bacaba e tucumã, além de bromélias, orquídeas e outras espécies de flores. Sem esquecer o espesso musgo que aveluda os troncos das árvores devido ao alto índice de umidade. Um descanso no Mirador após 1 hora e 30 minutos de pernada. Segundo Chico "para um refrigério". Dessa feita com fatias de abacaxi. A fruta, bem docinha, está uma delícia. Uma pena, mas nada se vê dos campos de savana lá embaixo porque a névoa esconde completamente a paisagem. Raros e, quando os há, curtíssimos os trechos planos. Em todo o trajeto, apenas rola uma descida, situada entre o Mirador e as Lágrimas. Na passada, ao largo das Lágrimas, duas cachus duns 150 m, que despencam lado a lado do topo do Roraima, dão a impressão que chove canivete. Tanto assim que a única parte de meu corpo ainda seca - os pés - acaba se molhando devido à água que entra nas botas. A grande quantidade de pedras soltas, de coloração bem clarinha, evidencia um constante desmoronamento oriundo da parede quebradiça do tepuy. Degraus naturais esculpidos na rocha pela ação da água facilitam a subida mas exigem certo cuidado porque estão resvaladiços da água que verte das Lágrimas. Após as Lágrimas, as pedras tornam-se maiores e, um pouco antes do topo, um monolito rochoso anuncia a presença de Macunaíma, o deus criador do universo, conforme crêem os povos indígenas que habitam tanto a Venezuela quanto o Brasil. No Roraima, Macunaíma fez sua morada, explica Marcelo, o outro guia, um venezuelano muito tranquilo. Numa boa performance, alcanço o cume em 3 horas e 15 minutos. Assim, às 11 e 35, estou eu empoleirada em cima desse vasto platô, apreciando, nos seus espalhados 34 km² de área, esse mundaréu de rochas a perder de vista. Percebem-se, nitidamente, os vários extratos que as compõem, se sobrepondo uns aos outros. Lembram aqueles castelos que as crianças fazem à beira mar com areia da praia. As pedras exibem formatos os mais variados possíveis: cogumelos, tartarugas, elefantes e o que mais o seu olho conseguir captar ou imaginar. A caminho do nosso acampamento, um helicóptero caído. O acidente ocorreu há uma semana, causado por um vento na hora da aterrissagem. Felizmente, ninguém se machucou seriamente. Após 40 minutos de pernada, pulando pedras e evitando os charcos onde abundam stegolepis e bonetias sessilis (bromélias), além de droseras roraimae e heliamphoras nutans (plantas carnívoras), chegamos ao acampamento Sucre, chamado curiosamente de “hotel”. No almoço, sabem o quê é servido? Massa!! E, de sobremesa, pequenos pedaços de goiabada, dessa feita, cobertos com respingos de creme de leite. Deve ser pra dar uma variada no “original” cardápio, hehe. A chuva continua e a bruma potencializa a descolorada e sombria paisagem constituída por rochas enegrecidas devido à coloração escura dos líquenes que as recobrem. O verde da escassa vegetação rasteira em nada altera esse tom lúgubre do cenário. Cenário de fim de mundo e não de mundo perdido, isso sim!

Um comentário:

Miriam Chaudon disse...

Que lindas suas viagens!!!!!Abração!