quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Chuvaral no rio do Boi

Depois de mostrar a Claudia e Val a parte de cima do canyon Itaimbezinho, vamos hoje percorrer a linda trilha do rio do Boi, situada em sua parte inferior. Entrevêem-se, de cada lado da estrada, de chão batido, culturas de fumo, de banana e de arroz, as três fontes econômicas da região. Nas roças, colhe-se a última leva de folhas de fumo, postas a secar em estufas, construídas junto às residências dos agricultores, e, posteriormente, vendidas às indústrias de tabaco, localizadas, em sua maioria, em Santa Cruz, no Rio Grande do Sul. É bucólica a paisagem: carros de bois passam ao largo da estrada carregados de produtos agrícolas, pessoas nos alpendres das casas abanam afáveis enquanto tomam chimarrão. Vacas de olhares plácidos atravancam a estrada. Respira-se a vida interiorana em toda sua simplicidade. O cheiro gostoso de alguma erva, similar à macela, perfuma os caminhos. Sem falar no odor cheiroso da cambraia, uma linda e delicada flor branca que se encontra à beira de regatos e rios da região. Chegamos no posto do IBAMA de onde enveredamos pela trilhazinha que conduz ao leito do rio do Boi. Quando lá chegamos (ao nosso grupo se juntara um casal de paulistas, o Fernando e a Cíntia, muito simpáticos, também, hospedados na Colina da Serra), percebo os estragos causados pela enchente de março. Das outras vezes em que aqui estivera – e já foram seis! – o rio apresentava encantadores pocinhos e tobogãs formados por lisos lajedos de rochas. Era uma delícia escorregar por eles. Agora, dos desvãos e das curvinhas deliciosas, só resta uma paisagem quase uniforme, à semelhança da planície de pedras que vai até o poço do Malacara. Entretanto, o estrago, graças a deus, foi mais na sua embocadura. À medida que adentramos no canyon, reconheço a feição que dele recordava quando aqui estive há dois anos atrás. O clima é de indecisão, sabe-se lá se chove ou não. E lá vamos nós atravessando o rio pra lá e pra cá, o que requer certos cuidados devido à correnteza um tanto quanto forte. Caloca chama nossa atenção para umas pedras sobrepostas umas às outras: “aqui deve ter um nicho de jararaca”. Dito e feito: vemos enrodilhada a víbora abrigada entre as rochas! Exclamações de medo pipocam das bocas femininas. O mulherio debanda assustado. Avanço um pouco, pouca coisa, e indago de Caloca se não há risco de ela pular na gente. Ele afirma que a jararaca está apenas esperando que passe algum rato (elas são muito pacienciosas) pra então dar o bote. Eu nunca havia visto uma cobra tão de perto. Senti, confesso, um medinho. À frente, um lindo morro pontiagudo chama a atenção: é o da Mamica. Me faz lembrar o seio das guerreiras amazonas que amputavam um deles pra melhor acomodar seu arco e flecha. A água límpida embora de um tom amarelo escuro permite ver com nitidez as pedras acomodadas no leito do rio: sobressaem da monotonia cinza do basalto azuladas incrustações de ágatas, ao passo que uma ferruginosa oxidação colore de laranja as pedras escuras. Seixos redondos e polidos, uma maciez tocá-los! Não resisto e num dos tantos poços que o rio forma mergulho pra espantar o calor e limpar o suor que umedece meu corpo. O sol está definitivamente bem escondido entre os maciços de nuvens que cada vez mais se avolumam sobre nós. Numa curva do canyon surge a primeira cachoeira, apelidada maliciosamente de Leite de Moça, já que o córrego que por ela despenca nasce no morro da Mamica. Bem apropriado, não é mesmo? Cada vez mais as paredes do canyon vão crescendo e se tornando mais e mais altas. Em certos trechos, os impressionantes paredões apresentam-se desnudos de vegetação, cobertos apenas de líquens que conferem uma cor esbranquiçada à pedra. Sentamos pra lanchar e Caloca ordena, temeroso da chuva iminente, que não demoremos muito. Uma pena, pois assim não poderemos curtir a segunda cachoeira, a do Braço Forte. Sei lá por quê, julgo precipitada a urgência dele já que só algumas gotas caem indecisas. Feliz, grito “vai ficar só nisso, Caloca, não passa disso!” Ele, cauteloso, “pode ser ... pode ser” e suas passadas largas exibem a desenvoltura de quem desde os 14 anos palmilha sobre pedras de leitos de rios. Um cabrito esse guia!! Que inveja! E não é que de repente a chuva começa a cair em caudal?!! Dos paredões, desabam enxurradas avermelhadas de água, cachoeiras brotam como passe de mágica escorrendo fartamente entre a vegetação que recobre as rochas. E o rio, até então límpido, transforma-se: suas águas colorem-se de marrom e trêfegas escorrem resolutas, avolumando-se numa espantosa velocidade. Quem não era ágil, vira gazela, e as travessias, fáceis, passam a ser feitas com cautela. Numa delas, a corda, que todo bom guia que se preza sempre carrega, é lançada e dessa forma, improvisa-se uma ponte a fim de facilitar a travessia. Uma certa emoção toma conta do pequeno grupo, afinal se percebe, distintamente, no rio, o forte redemoinho que, ávido, mostra suas garras querendo abocanhar os canhestros turistas. Tudo tão sereno e de repente aquilo que era pura mansidão vira furor. É....não dá mesmo pra brincar com uma bacia de captação cujo alcance no entorno do canyon é de 15 km. Sãos e salvos, somos resgatados até a outra margem. Todos nós respiramos aliviados e retornamos intactos ao posto do IBAMA. Outra pequena aventura a adrenalizar nossa trip. Melhor celebração que essa nem a mais fina champanhe pode proporcionar!

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