sábado, 14 de agosto de 2010

Bivaqueando no Faxinalzinho

O relógio do carro marca 5:20, e eu, contrariando o hábito de ir na sexta, estou indo a Praia Grande, hoje, sábado. Apressada, pero não desesperada, vôo as tranças estrada afora. Sem correrias, entretanto. Meu filho, embora com 29 anos, ainda precisa de mim, caramba! Escuto no rádio programas gauchescos. Curto música gaudéria vez por outra. Chego na cidade e vou direto pegar Kaloca. Passamos na Colina da Serra onde Pauleca nos aguarda. Irá conosco pois trará o carro de volta a Praia Grande. A pedida do findi é acampar no canyon Faxinalzinho, situado nos confins da Pedra Branca. Mas como vamos fazer travessia dentro dele, temos de ir por cima, pela serra do Faxinal cuja estrada apresenta pequenos trechos asfaltados apenas até o restaurante do Loro. Infelizmente, o restante do asfaltamento encontra-se embargado por conta de problemas ambientais. Já estávamos na metade do caminho quando Kaloca pergunta se eu trouxera a barraca. Eu, na atucanação da chegada em Praia Grande, nem me lembrara de pegar a de Iba, irmã de Maria. Kaloca já está virando o carro pra retornarmos, quando nos olhamos e falamos quase ao mesmo tempo: "vamu deixá quieto, num vai chover, então dá pra bivaquear." Paulo, não sem uma ponta de admiração, deixa escapar um "vocês são loucos". E eu bem feliz dou risada. Só desejo que o céu esteja estrelado pra poder curtir a noite. Abandonamos a estrada do Faxinal e entramos à esquerda na estradinha que conduz ao Crespo, um atalho que dá em Caxias sem que seja necessário ir a Cambará. E, pela janela do carro, eu vejo, com o rabo dos olhos, esparsos capões de mata nebular destacando-se entre as suaves ondulações dos campos de cima da serra. Quando damos tchau pro Paulo, meu relógio marca 11 e 30. O tempo nublado não oferece perigo, se confirmada a previsão otimista da meteorologia, consultada ontem em Porto. Andamos pouco mais de uma hora por um campo quase sem árvores até que surge uma densa mata ciliar onde, segundo Kaloca, se encontra o vértice sul (principal) do Faxinalzinho, situado numa pequena garganta lateral. Entretanto, não descemos por ali pois Kaloca procura outro vértice, aquele que se localiza justo no corredor central do perau. Um pouco mais adiante, já dá pra se avistar o paredão norte cuja coloração esbranquiçada se deve à presença de líquenes que cobrem as rochas. Bordejamos a mata até chegar num ponto onde Kaloca supõe que se encontre o primeiro vértice. Pra se chegar lá embaixo, descemos por uma pirambeira cuja inclinação beira os 75°, atravancada de bambuzinhos e espinhos unha de gato. Uma merda essa vegetação, dá vontade de lhe passar o facão sem dó nem piedade. Perco Kaloca de vista e quando estou quase chegando no final da piramba, surge, em meio à vegetação, uma linda cachu despejando ruidosamente suas águas no vácuo. Kaloca, subindo de volta, sinaliza para que eu retorne. Explica que não vai arriscar um rapel por este vértice porque só trouxe 50 metros de corda. Procuramos, então pelo segundo vértice. A mesma coisa, Kaloca vai na frente pra rastrear o caminho. Eu, atrás, piso com cuidado nas pedras escorregadias que forram o leito do rio. Mais uma vez, Kaloca retorna. Teme continuar a descida porque receia que haja cachoeiras com mais de 50 metros. Voltamos todo o percurso que fizéramos há 2 horas e adentramos o canyon pelo terceiro vértice, situado na gargantinha lateral. O cânion forma um T, daí o motivo de ter três vértices. Descemos pela estreita garganta. Se faz necessário apenas um pequeno rapel, feito na lateral da cachoeira, evitando assim que nos molhemos em sua água trigelada. Só saimos no corredor central do perau às 18:15, já quase sem luz do dia. Acampamos na margem direita do rio. Kaloca acende um fogo junto a uma grande rocha. Molhada da travessia da cintura pra baixo, trato de tirar a roupa encharcada e trocar por uma seca. Ajeito o isolante no chão e me enfio no saco de dormir. Meus pés, uma barra de gelo, reclamam aconchego. Porque a lanterna de Kaloca estragou, ele, com uma vela na mão, vai em busca de lenha pra alimentar a fogueira. Retorna, com uma boa braçada de galhos robustos, e inicia os preparativos da janta (sim, quem cozinha é ele, eu fico só dando apoio psicológico). Como eu esquecera de levar meu prato e talheres, ele cede os seus pra que eu coma primeiro. É um gentil cavalheiro esse meu guia. Fofo demais ele!! Mais um motivo pra eu sempre querer andar de “mãozinha dada” com ele, hehe!! Batemos um papo até que a conversa esmorece naturalmente. Avisto, dentre a abundante folhagem, o céu pontilhado de estrelas. Boa demais esta vida!! Durante a noite, eu sinto algo tocando meus pés. "Será Kaloca?", cogito eu. Mas depois me dou conta de que se encontra afastado de mim, então sem chance de ser ele. Só pode ser algum bicho. Sei lá se um gambá, não importa, mas que era um bicho de quatro patas era! E de tamanho médio por causa da pressão que senti nos pés quando passou sobre eles. Nem me assustei, encarei com naturalidade ser passarela de bicharocos silvestres. É o que dá esquecer a barraca e dormir ao relento! Acordar no domingão, depois de bivaquear num canyion, com temperatura de 6º C às 7 da matina, é aventura pra poucos! E eu tenho a sorte de ser um deles! Às 9, partimos. Com uma extensão de 4 km, a pernada deverá durar em torno de 8 horas. Caminhar em canyon é dureza, extenuante pra caramba. Requer equilíbrio, resistência, condicionamento aeróbico além de muita paciência. Quando saquei isso, tratei de usar o canionismo como um meio de treinamento pra enfrentar lances mais pesados como trekking em alta montanha com altitudes superiores a 5 mil metros. O canyon é muito bonito, cheio de ótimos poços. Se não fosse inverno, seria tudo de bom mergulhar neles. Suas paredes não são as mais altas dentre os peraus que conheço, confirmado pela altura das cachus que não ultrapassam os 60 metros. Embora o canyon tenha bastante quedas d'água, foi possível evitá-las, dando balão por dentro da mata. Apenas três cachus exigiram rapéis, feitos entretanto, no seco, com ancoragem nas árvores. Depois dumas quatro horas de caminhada, as escalaminhadas e desescalaminhadas nas rochas cessam, sinal de que sua declividade está terminando. Ainda bem, porque já tô bem cansada de tanto sobe e desce nos matacões. O dia, bem mais aberto que ontem, segura por largos espaços de tempo nacos ensolaradas do céu. Quando se sai do rio, pra entrar numa estradinha que o ladeia, avista-se a Pedra Branca e os morros da Corcova e da Mitra. E, não dá 5 minutos, já na estrada geral, embarcamos na traseira dum caminhão, vindo da comunidade São Roque onde, anualmente, celebra-se a festa em homenagem a este santo padroeiro. A carroceria do veículo é uma casa ambulante, há de tudo um pouco: fogão a lenha, freezer, mesas, cadeiras, cobertores e uma churrasqueira. É costume do povo praiagrandense ir na sexta à noite pra curtir a festança que se prolonga até domingo à tardinha. Cansadésima e com a roupa molhada, só tenho um desejo: tomar um banho bem quentinho quando chegar na pousada. Tô encarangada de frio. Afinal, ainda estamos no inverno aqui no sul!